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Sexta-feira, Julho 26, 2024

João Salaviza: “Cavaco Silva é um grande mestre do suspense e do terror”

salaviza1João Salaviza esteve à conversa com o Tornado, sobre Montanha, o filme que estreia dia 19, e que é mais um caso do cinema português que atravessa a fronteira internacional. Antes do seu novo projecto, que o levará ao Brasil, um dos mais jovens e excitantes realizadores nacionais fala como vive o seu cinema.

“Mesmo não sendo este um corte radical com as curtas que fiz antes, comecei a sentir essa limitação temporal”, esclareceu ao Tornado o realizador lisboeta de 31 anos.

Na verdade, há muito que o cinema de João Salaviza não cabia no espartilho da curta metragem e ansiava transformar-se em longo formato. Algo que se tornou por demais evidente em Rafa, a curta que venceu o Urso de Ouro em Berlim, em 2012, e que já funcionava como o esboço de um filme. Mesmo antes disso, já em Arena, o filme que consagrou o nome do realizador ao vencer a prestigiada Palma de Ouro, no exigente festival de Cannes, edição de 2009, nos convidava a imaginar o que se passava na vida da personagem de Carloto Cotta e das pessoas com que se cruzavam.

Concretizou, este ano, o inevitável sonho no longo formato ao receber no festival de Veneza o aplauso na secção da Semana na Crítica. Montanha estreia esta semana em Portugal, com oito cópias, isto depois de já ter passado pelo festival de San Sebastian, de vencer o grande prémio do festival de Montpellier e, claro, de ter integrado a programação do Lisbon & Estoril Film Festival. Continuará, entretanto, o seu périplo festivaleiro pela Europa e América Latina. Afinal de contas, o passaporte merecido para estas “memórias sensoriais e oníricas da adolescência”.

Fascinante este período irrepetível dos 14 anos. Foi por aí que começou a nossa conversa no Salão Ideal, a salinha no andar de cima do cinema Ideal, em Lisboa. No meio dos livros e dos filmes, as conversas fluem melhor. Onde ficamos a saber da descoberta do menino de olhar dilacerado chamado David Mourato que impregna a Montanha, mas também do passado do menino Salaviza nos prédios de onze andares de Alvalade “rodeado de militares de carreira”; o menino que adormecia com a enésima repetição de uma cena de um filme de Paulo Rocha que o pai, Edgar Feldman, montava em casa; o menino que teve pequenas participações em filmes de Manuel Mozos ou Jorge Silva Melo; o menino que um dia pensou em ser jornalista, mas que trocou as histórias escritas pela janela do cinema. Essa que se abrirá agora para uma vida nova do jovem realizador que o levará aos confins do Brasil, a Tocantins para fazer nascer a história do seu novo projecto.

Como todas as histórias, a energia interior de João Salaviza tem de vir de dentro, de alguma identificação de geração. AF_Cartaz_MONTANHA_70x100“Há uma pulsão nos adolescentes que tem muito a ver com o cinema”, diz. “Aquela sensação de ser um corpo que é também o reflexo do que está à nossa volta”. Afinal de contas, uma transformação violenta, “um segundo parto”, como diz Salaviza, uma vontade que tem dado vida nova ao cinema. Um pouco como aconteceu com James Dean em Fúria de Viver, mas também com Godard, o inevitável Godard, mas também com o cinema dos iranianos Kiarostami e Panahi, que o realizador não quis deixar de recordar. Sim, Salaviza não receia a ambição – “como se o cinema tivesse sido inventado para filmar a juventude”.

“Queria mostrar essa vitalidade”, sublinha. “Mas criar esse lugar de cinema que me remete mais para filmes antigos. E também para uma relação com a cidade”. Aliás, uma das suas angústias confessadas era “perceber se existiria alguma impossibilidade em recriar a frescura dos miúdos de Lisboa em 2015.” Essa mensagem passou, João.

João Salaviza recorda-nos a imagem inicial do filme, com David num plano fetal, quando a mãe o aborda. “Aqui temos o retrato como um corpo em movimento”. O corpo de David, a personagem central do filme. “Como se um corpo pudesse falar de um país inteiro, sem termos de fazer um plano de grua pela cidade”. É essa a dimensão de David Mourato, o tal garoto não actor “uma presença”, como define o realizador, que apareceu no casting, ao lado dos 400 candidatos, mas “o único que apareceu ali sem mostrar que estava interessado em fazer um filme. Mas é também dessa resistência que o filme vive. Ele protege-se conserva os mistérios.”

É o David da deambulação urbana, da descoberta do primeiro amor da Paulinha, do enfrentamento e censura da professora, do menino que sofre com a doença do avô, a distância do pai e a incerteza da mãe. O mesmo David que irá viajar até ao fim da noite e dançar de olhos fechados numa comunhão de corpos ao som da música de Norberto Lobo. “É quase uma aventura na noite”, recorda o cineasta. No meio disto tudo, o cinema. “O que comove mais as pessoas é a natureza dele e não os seus dotes de representação. O cinema consegue esta máscara de ficção que consegue chegar à verdade do que uma representação mimética da realidade que alguns documentários propõem. É isso que permite que o David seja ele próprio”.

“O cinema propõe sempre uma realidade nova. É uma arte optimista, mesmo quando mostra tempos de tragédia. A ideia de se fazer um filme já é uma ideia romântica. Optimista.” Um filme que nasce de um ano de convivência com David Mourato.

 

Do que falamos quando falamos de cinema português?

Cannes, Berlim, Veneza, San Sebastian, Montpellier… E agora, João Salaviza?

salaviza6Sim, já sabemos que está a preparar um filme que vai ser filmado no Brasil. Porquê?! “Há uma mulher pelo meio”. De resto, o Brasil e o amor tem feito parte da vida dos Salaviza. “Sim, a minha família tem uma história longa de relações amorosas que já vai na terceira geração”. Ela é Renée Nader, a sua assistente de realização em Montanha e companheira de vida. Isto porque “é a vida que me leva a fazer filmes. E este é tanto um projecto de vida como de cinema. Quanto mais as coisas se misturarem melhor. Tem acontecido assim nas minhas curtas.” Mas também porque há já alguns anos vive e trabalha com uma comunidade indígena dos Krahô, em Tocantins, a norte de Brasília. Actualmente, está em fase de preparação, assim possa partir para o Brasil, depois dos compromissos da estreia da sua Montanha. “Mas não tenho pressa”, vai dizendo. “Os meus filmes demoram sempre algum tempo a fazer.”

Um percurso que facilitou esta co-produção franco-alemã, no entanto com a maior parte do financiamento português. Quanto custou o filme? Cerca de um milhão de euros, “bastante barato para a escala europeia e ligeiramente acima do que o ICA dá para uma primeira obra”. Mas como joker das pré-vendas para a Alemanha.

Este é apenas mais um caso do cinema português que atravessa a fronteira. Apesar da crise, apesar de tudo. Perigoso será fazer a estúpida analogia de que se fazem melhores filmes com menos dinheiro. Até porque “quem os quer fazer, fá-los de uma maneira ou de outra.” Até porque não significa que os eventuais blockbusters portugueses sejam melhores filmes. A questão é esta: do que falamos quando falamos de cinema português?

“Fazem-se tão poucos filmes em Portugal, a média de bons ou óptimos é tão grande que transmite uma sensação de que o cinema português está muito vivido e efervescente que não é verdade”. Atenção, João adverte para sermos realistas: “Portugal faz menos filmes do que a Galiza.” Ainda que as coisas parecem ter retomado algum fôlego, apesar das “relações conflituantes com o poder, como poder económico.” Pois, não será esse sempre “o tal paradoxo do cinema e da cultura em Portugal?”, questiona João Salaviza, “em que até existe um Ministério da Cultura”, completamos. “Mas será que hoje ainda existe?!”, interroga-se o realizador com ironia. “É que nesse aspecto, Cavaco Silva é um grande mestre do suspense e do terror”.

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