“1. O jornalista deve relatar os factos com rigor e exactidão e interpretá-los com honestidade. Os factos devem ser comprovados, ouvindo as partes com interesses atendíveis no caso. A distinção entre notícia e opinião deve ficar bem clara aos olhos do público” (Código Deontológico do Jornalista, 1993, consultado a 5 de Dezembro).
Estamos em 2015. Significa este apontamento de dictização que o documento supracitado existe há vinte e dois anos. Seria expectável que o exercício da profissão estivesse, sem excepção, à altura do conteúdo desde Código, e que o seu (re)conhecimento constituísse a regra desse exercício. Nenhum dos dois se confirma. Importa a) fazer um diagnóstico sério sobre a condição actual do Jornalismo, b) conhecer as razões que o justificam, e c) compreender em que medida todas e todos podemos contribuir para que esse exercício e esse reconhecimento se tornem a regra.
A nível de diagnóstico não é difícil encontrar exemplos de atropelos regulares a este princípio, tão ilusório na sua simplicidade como raro na sua (re)descoberta. Diariamente, através das mais diversas linguagens e códigos, da escolha de termos e frases com entoação peculiar, ao acompanhamento a eles oferecidos pelos gestos, continuando pela postura e conduta facial, e terminando na dimensão visual ilustrativa escolhida, é possível encontrar exemplos de pivots e de repórteres televisivos cujo trabalho está muito longe de se encontrar à altura da decisiva função que desempenham.
Na prática, todos esses códigos, reunidos, se apresentam como um guião de avaliação da realidade, em conjunto com os factos eles próprios submetidos a processos de selecção pouco transparentes e baseados em interpretações duvidosas de conceitos ambíguos como os de liberdade editorial e valor-notícia.
Que razões ajudam a explicar este diagnóstico? Por um lado, uma deriva de empresarialização da actividade que, exactamente à semelhança do que produz(iu) noutros sectores, não apenas descaracterizou mas reduziu a um mero funcionalismo de secretária e terminal as funções desempenhadas pelo Jornalismo, em detrimento desse conceito abstracto mas tão confortavelmente dado ao pensamento mediocremente geométrico da Gestão: conteúdos. Na realidade, apenas um processo baseado em argumentos puramente técnicos poderia ambicionar o empobrecimento de uma actividade que sempre teve nos domínios da Ética e da Civitas a sua raíz e o seu propósito.
Por outro lado, e de modo particularmente insidioso, um processo de aculturação da profissão centrada na glorificação do protagonismo individual, e não da celebração do acto profissional colectivo de escrutinar ao serviço da Civitas. Desse modo, até o próprio conhecimento dos princípios que regem o exercício da profissão tem sido sacrificado em prol de uma visão meramente situacionista da actividade, na qual se celebram as figuras do passado na exacta medida em que os valores delas seriam absolutamente impopulares entre a classe dos nossos dias. Sobram, por essa razão, os agentes da ignorância, de uma cultura geral ou específica absolutamente miserável, quando não agentes a quem assentaria melhor, por diagnóstico exógeno e por afirmação própria, o estatuto de diva, à absoluta revelia dos princípios da própria actividade – que, de resto, na esmagadora maioria, a partir da sua prática visível e das suas afirmações regulares, parecem desconhecer.
O que têm os agentes desta condição, os partidários do gestionismo e do auto-engrandecimento, a oferecer em resposta ao diagnóstico quando interpelados e escrutinados? Um conjunto muito limitado de argumentos.
O primeiro joga-se, desde logo, em torno da incontornabilidade da condução da actividade segundo critérios técnicos aos quais boa parte dela deve ser estranha, para defesa da sua integridade. Na realidade, um tipo de pensamento estritamente mecânico, de aplicação de regras cegas à especificidade do sector da Informação, aponta precisamente à perda dessa especificidade: não é possível gerir uma actividade particular aplicando-lhe procedimentos e paradigmas de natureza genérica, nem convidar para processos de tomada de decisão ética agentes para os quais essa dimensão não apresenta mais-valias. Na ânsia de apresentar índices, valores, percentagens, esta forma de toma de decisão amputa, com frequência, precisamente o que valoriza esta actividade.
O segundo, tão ilógico como inaplicável, reside num suposto direito ou reserva à compreensão efectiva das condições de produção jornalística apenas acessível… aos seus praticantes. O conceito de que apenas quem tem experiência no desempenho da profissão a compreende efectivamente não faz qualquer sentido: de outra forma, a própria profissão, no sentido do escrutínio relevador que exerce sobre outras profissões, seria absolutamente impossível.
O terceiro centra-se sobre a impossibilidade material da objectividade. Ora, a questão não é se ela é possível, mas sim quando desligados da sua procura parecem encontrar-se os profissionais dela, descartando qualquer empenho neste sentido à luz do carácter inatingível do resultado. Por esta ordem de ideias, não seria compreensível qualquer investimento na Saúde e no combate à doença, na certeza de que a morte é, a certa altura da vida do ser humano, inevitável. Por outro lado, a argumentação assente na incontornável natureza humana – e, enquanto tal, falha – da actividade deve merecer como resposta que a questão não pode ser colocada ao nível da inevitabilidade do erro, mas sim da utilização da sua probabilidade para desculpar a sua recorrência, bem como de se abdicar de combatê-lo e de assegurar que essa recorrência diminui, em vez de justificar irresponsavelmente a repetição da opinião em vez do reporte isento, da veiculação de um juízo de valor implícito em detrimento da veiculação dos factos.
Em que medida pode a comum cidadã e cidadão contribuir para inverter esta tendência, e o papel nefasto que desempenha junto da Civitas? De que forma pode o profissional consciente participar desse processo? Dos primeiros espera-se critério, dos segundos compromisso. Dos primeiros a escolha das peças e dos trabalhos nos quais ainda sejam respeitados os princípios que separam a boa prática jornalística deontologicamente enquadrada do mero exercício de repetição de juízos de valor. Dos segundos, a recusa em tomar parte de outra coisa que não de trabalhos com essas características, que respeitem essa herança, que cumpram esse desiderato. Exige-se a cidadãos e a profissionais o envolvimento com aqueles e aquelas de quem é possível esperar distanciamento face aos factos, contexto que os valorize, e compromisso com uma sociedade e um colectivo humano que acrescente, e não que apenas repita. Sem os primeiros, a profissão não tem propósito: sem os segundos, a sociedade, nos seus valores progressistas, não tem futuro.
[…] Source: Jornalismo e Deontologia: presente e futuro – Jornal Tornado […]
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