Muitos talvez não acreditem nesta realidade: como podem pessoas, que nunca se viram antes, terem um encontro fraterno, rico, só possível entre velhos amigos? É que os comunistas têm isso, e quem não é, não sabe o que está perdendo.
Em 7 de outubro deste 2021, o intelectual comunista, escritor e jornalista José Carlos Ruy completaria 71 anos. Postei há pouco na sua página do Face: “amigo e camarada Ruy, não faltarei ao seu dia”. Cumpro a seguir o prometido.
Recupero da memória a primeira coisa: como foram bons os nossos encontros! No primeiro deles, nos encontramos em Olinda, eu, ele e Marco Albertim, o nosso Marcão. Dessa vez, fomos para o Alto da Sé, e lá do alto, pela janela do restaurante, víamos o Recife, o porto do Recife, e bebemos aguardente e cerveja. Como foi bom!
Muitos talvez não acreditem nesta realidade: como podem pessoas, que nunca se viram antes, terem um encontro fraterno, rico, só possível entre velhos amigos? É que os comunistas têm isso, e quem não é, não sabe o que está perdendo.
O fato é que ali o nosso encontro foi de velhos camaradas, embora na época eu não houvesse entrado no partido. Ele e Marcão, sim. O certo é que ali bebemos e conversamos de tudo e de todas as coisas que eram possíveis.
Eu via Ruy, à penumbra da noite, falar de literatura, do Vermelho, da cultura, da literatura, da história do comunismo no mundo, com propriedade e erudição, sem ar professoral. Ele falava como um amigo que é outro de nós. Entendem? A lição de suas palavras vinha como numa aula de Sócrates, que fazia o interlocutor descobrir uma verdade como se fosse própria.
Então, eu soube que ele havia sido da redação do jornal Movimento, enquanto militava no Partido Comunista do Brasil. E que ele trabalhara como editor na Abril, enquanto editava de coração o jornal A Classe Operária. Quero dizer, do ponto de vista da militância política, ele era um dos intelectuais da tradição comunista no Brasil.
Consulto a internet e vejo que Ruy deu sua contribuição analítica e intelectualmente sofisticada a publicações como a revista Princípios, a revista Debate Sindical, o jornal A Classe Operária, o portal Vermelho, o portal da Fundação Maurício Grabois, o jornal Movimento, a revista Reportagem e a revista Retrato do Brasil. Brindou livros com prefácios entusiasmados e traduziu muitos textos seletos para a compreensão da geopolítica internacional. Sua contribuição também está presente em coletâneas de artigos, assim como em suas próprias obras como Os comunistas na Constituinte de 1946 e Biografia da nação. Na coletânea 100 anos da Revolução Russa, escreveu o artigo A Revolução de 1917 e a luta contra o racismo, um tema do qual teve profunda proximidade na Unegro e no Instituto Brasileiro de Estudos Africanistas (IBEA). Deixou, inéditos, entre outros, dois trabalhos: um sobre a obra de Machado de Assis e outro sobre a luta antirracista.
A essas informações acrescento que em Biografia da Nação ele nos deixou um livro fundamental para quem quer conhecer o vasto Brasil, porque realiza uma revisão histórica de todos pensadores do nosso país até hoje. Como Júlio Cesar de Oliveira Vellozo bem situa a obra no prefácio:
“Ruy tece uma narrativa que é a um só passo uma biografia da nação e dos biógrafos da nação. Trata-se de uma obra sobre a história do Brasil e também sobre sua historiografia. Nesse ponto, Ruy se mostra um grande leitor tanto no sentido da quantidade — já que passam pelo seu crivo um enorme número de escritos —, com o sentido de ser um grande analista das ideias alheias, uma tarefa especialmente desafiadora quando muitas dessas ideias são sustentadas por gente cuja visão de mundo lhe é oposta”.
E copio este brevíssimo trecho da Biografia da Nação: “Oliveira Viana não ignorou essa realidade miscigenada, mas minimizou seu alcance ao introduzir outro conceito enganador, a ideia de que existiriam mestiços ‘superiores’ e ‘inferiores’. A defesa radical do arianismo – só compreensível em um autor mestiço como Oliveira Viana pela sua posição de abastado latifundiário – é um exemplo do dito segundo o qual no Brasil o dinheiro branqueia”.
Não demora muito, todos vão conhecer o legado que ele deixa para todos os tempos: o Dicionário de Machado de Assis, que será lançado para o mundo neste outubro. Tive a felicidade de fazer a revisão da obra, depois da morte de Ruy. E posso dizer com a mão na consciência: o meu trabalho foi altamente compensado pelo que aprendi, guiado pelas mãos de Ruy no Dicionário. Não poucas vezes ri, gargalhei.
A lição que recebi é esta: o pior ignorante é aquele que pensa que sabe. Eu pensava que sabia sobre Machado de Assis….
Olhem um só exemplo do Dicionário vindouro, neste magnífico resumo de uma personagem da obra machadiana, em um trecho genial da interpretação do pesquisador que não trai Machado de Assis:
“Camila – É daquela casta de mulheres que riem da idade. É bonita e deixa às outras o trabalho de envelhecer. Tem cabelo negro e olhos castanhos; as espáduas e o colo feitos de encomenda para os vestidos decotados. E um certo instinto que a beleza possui, junto com o talento e o gênio. É casada com um viúvo, honesta não por temperamento, mas por princípio, amor ao marido e um pouco por orgulho. Vive principalmente com os olhos na opinião. Entrou na casa dos 30 anos de idade e não lhe custou passar adiante. Duas ou três amigas dizem que ela perdeu a conta dos anos, sem perceber que a natureza era cúmplice, e que aos 40 anos Camila mantém um ar de 30 e poucos. Quando surgiu um pretendente para a filha, ficou prostrada: viu iminente o primeiro neto, e determinou-se a adiar o casamento da filha. (conto Uma Senhora, 1884 )”.
O que dizer do primor estético de tal síntese?
Não posso concluir esta breve homenagem ao aniversário de José Carlos Ruy sem um agradecimento: ele foi a pessoa essencial, que sem ele eu não teria publicado tão cedo o romance A Mais Longa Duração da Juventude pela LiteraRua. Ruy foi o cara que fez os contatos, quebrou arestas, atapetou o caminho para o livro, sobre o qual escreveu a brilhante apresentação, “Um sonho que a repressão não destrói”.
E finalmente, o que poucos sabem até hoje: José Carlos Ruy foi a ponte da tradução do romance para o inglês, que já foi concluída pelo escritor e poeta Peter Lownds. Em resumo, Ruy foi o intelectual e amigo que nos abriu portas para a divulgação da literatura que escrevo. Não somente para mim, mas até onde sei, de Marco Albertim também, de Christiane Brito, e de outros que não alcanço.
Isto é, eu tenho com esse pensador raro dos nossos dias uma dívida impagável. Ele era um heroico amigo, que quase cego não reclamava. Nunca vi um só momento Ruy reclamar dos males que sofria, de solidão, doenças, angústia, raiva, desespero. Nada. Ele era sempre o sorriso fraterno. O acolhimento e o incentivo para as viagens culturais e literárias.
José Carlos Ruy, enfim, um clássico. Um homem que escrevia sobre filosofia, literatura, história, política, sem temer a dimensão dos intelectuais criadores e temas sobre os quais falava. Ele escrevia sobre Machado de Assis e sobre Engels, sobre Marx e sobre Shakespeare, com a maior propriedade, sem pose. Repito: José Carlos Ruy era um clássico! Mas ele era também um clássico da amizade, pois era aquele amigo que procuramos quando caímos no maior desassossego.
O seu outro nome era fraternidade, Ruy. Abração inesquecível nos seus 71 anos.
Texto em português do Brasil