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João de Sousa

Sábado, Novembro 23, 2024

“Esta decisão foi um choque para todos…”

As reacções à decisão do Juiz Ivo Rosa nada tiveram de surpreendente: sabia-se que todos aqueles que nutrem um ódio de estimação pelo ex-Primeiro Ministro não aceitariam menos que a pronúncia por todos os crimes constantes da acusação; quanto aos indefectíveis de José Sócrates, tudo o que diminuísse a carga acusatória seria sempre uma vitória.

“Esta decisão foi um choque para todos. É a prova de que a Justiça não funciona!”

 

“Esta decisão demonstra que a Justiça está a funcionar.” 

 

“As pessoas estão perplexas, pois não entendem esta decisão”.

 

A partir do fim da tarde da passada Sexta-feira, dia 9/4, frases deste género foram proferidas abundantemente nos diversos canais de televisão: jornalistas, agentes políticos, comentadores, todos se esforçavam a encontrar frases sonantes que pudessem demonstrar que, efectivamente, eles não tinham qualquer noção do que se estava a passar.

E, no entanto, era fácil de compreender: tinha sido proferida uma decisão instrutória num processo-crime, à semelhança de tantas outras que são proferidas diariamente nos nossos Tribunais.

Então, o que distinguia esta decisão de todas as outras, ao ponto de provocar tantas reacções de espanto (já não digo, de ignorância, dado que ela já domina de tal forma os comentários televisivos que não surpreende): apenas o facto de ser proferida no processo “Operação Marquês”, ou seja, aquele em que é arguido José Sócrates; Ricardo Salgado também tem alguma relevância, mas todos os outros arguidos são meros figurantes, quando comparados com a estrela máxima do cartaz.

As reacções à decisão do Juiz Ivo Rosa nada tiveram de surpreendente: sabia-se que todos aqueles que nutrem um ódio de estimação pelo ex-Primeiro Ministro não aceitariam menos que a pronúncia por todos os crimes constantes da acusação; quanto aos indefectíveis de José Sócrates, tudo o que diminuísse a carga acusatória seria sempre uma vitória.

Quanto aos profissionais do foro, desde que a sua inteligência não fosse demasiado obnubilada por interesses corporativos ou desejos pessoais, apenas podiam ver na decisão o normal exercício da função jurisdicional, naquela fase do processo.

Tentando esclarecer um pouco aquilo que se passou – a matéria é tão vasta que não cabe num escrito desta natureza – cabe dizer que a instrução é a fase do processo, meramente facultativa, em que um juiz decide se deve, ou não, levar o arguido a julgamento, ou ser o processo arquivado. A investigação do juiz é autónoma, ou seja, não está dependente da posição do Ministério Público, nem dos restantes sujeitos processuais.

Quando existe acusação, como era o caso, o juiz decide se o arguido vai a julgamento por todos os factos constantes da acusação ou apenas por alguns, ou se decide arquivar o processo, ou seja, não pronunciar o arguido. Os fundamentos da decisão constam na lei, como não podia deixar de ser: a existência no processo, ou não, de indícios suficientes que permitam pressupor que, em julgamento, será aplicada ao arguido uma pena ou uma medida de segurança.

A razão do preceito é simples e clara: evitar levar a julgamento uma pessoa sobre a qual se entende que não foram colhidos indícios suficientes que permitam considerar, com algum grau de certeza, que em julgamento lhe será aplicada uma pena ou uma medida de segurança.

A submissão de qualquer pessoa a um julgamento criminal tem sempre um grau de prejudicialidade e de carga pública tão desfavorável sobre a sua imagem,  que o legislador entendeu que esse acto deverá ser rodeado de cautelas.

Concorde-se ou não, foi nesta sede que se enquadrou a decisão do Juiz Ivo Rosa. E se formos capazes de olhar para esta questão sem pensarmos em José Sócrates, mas em qualquer outro cidadão, que até pode ser nosso conhecido ou familiar, veremos que os cuidados do legislador se justificam. E veremos também que juiz Ivo Rosa não saiu dos poderes que a lei lhe confere. Ou seja, não foi para além do que a lei lhe permite.

Questão diversa é saber se interpretou e aplicou bem a lei. Ainda que aos tribunais caiba administrar a justiça, aos juízes cabe aplicar o Direito.

Sobre a aplicação do Direito pelo juiz Ivo Rosa, e é a isso que ele estava obrigado, surgiram logo críticas de todas as direcções, algumas, aliás, de quem não tem qualquer formação jurídica e desconhece completamente as matérias de que fala; ou tendo-a, não consegue afastar os seus preconceitos pessoais da análise.

Vou apenas analisar duas situações em que Ivo Rosa foi altamente criticado, e mesmo censurado, como se não soubesse nada de Direito. Aliás, cheguei a ouvir alguém dizer que o processo ia para a Relação, e que os juízes da Relação sabem muito mais de direito do que Ivo Rosa. Entre os profissionais do foro está por demonstrar que um Juiz das Relações, só pelo facto de o ser, sabe mais de direito do que um juiz da 1ª Instância!

A primeira situação prende-se com o crime de fraude fiscal, pelo facto de José Sócrates não ter declarado à Autoridade Tributária os rendimentos ilícitos que terá recebido.

Disse o juiz Ivo Rosa que entende que ninguém é obrigado a declarar um facto que pode ser crime, ou seja, a inculpar-se, pois esse é um dos princípios do Estado de Direito.

Com efeito, e dado que já foi extinta a inquisição, num Estado que respeita os Direitos do Homem ninguém pode ser obrigado a confessar a prática de um crime.

A prática de um crime de fraude fiscal relativamente a rendimentos ilícitos tem interpretações diversas; neste caso, Ivo Rosa optou por uma interpretação, e nem sequer está sozinho. E enquanto juiz, não só tem o direito de interpretar a lei, mas tem mesmo esse dever. E não está obrigado à interpretação dos outros.

Questão diversa é a tributação dos rendimentos, ainda que obtidos ilicitamente: essa está prevista na lei, mas daí não se retira necessariamente que quem os obteve está obrigado a declará-los. No entanto, se a Autoridade Tributária tiver conhecimento desses rendimentos, deve tributá-los.

A segunda situação prende-se com a eventual prescrição dos crimes de corrupção.

Há igualmente interpretações diversas sobre o facto que determina o início da contagem do prazo de prescrição: o momento em que corruptor e corrupto fizeram o acordo; ou o momento em que o pagamento foi feito, normalmente mais tarde?

Para Ivo Rosa, o momento que conta é o do acordo. A partir daí, conta-se o prazo de prescrição; e não está sozinho na defesa desta posição.

Como referi, a decisão instrutória, totalmente correcta ou não, da forma como foi feita cabe dentro dos poderes do Juiz de Instrução. Os recursos que vierem a ser apresentados (e desde já se diga que parece excessivo o prazo pedido pelo MP para recorrer, tendo em conta que o MP é quem conhece melhor o processo), apreciarão se a decisão está totalmente correcta ou, não estando, quais as censuras que merece.

Mas, se me é permitido fazer aqui recurso à minha experiência de muitos anos, direi que a investigação de um processo (o Inquérito), é fundamental para a decisão final do processo, no sentido de condenação do arguido. Se o Inquérito não está bem feito, se as provas não são suficientes e obtidas de forma legal, normalmente o destino do processo é a absolvição.

Portanto, talvez fosse melhor que os que bradam contra o Juiz Ivo Rosa e até pedem o seu afastamento da magistratura (!), pensassem se o MP fez bem o seu trabalho e fundamentou devidamente a acusação. É preferível, muitas vezes, acusar por menos crimes mas com bom fundamento, do que a acusação por muitos e variados factos que, depois, não encontram a devida sustentação.

Mas não podemos esquecer que o MP tinha de justificar, aos olhos de todos, seis ou sete anos de investigação. E isso só se conseguia com uma acusação muito grande. Não sabemos – eu não sei, e particamente todos aqueles que se têm pronunciado, também desconhecem – se a prova está bem feita e é suficiente. Aliás, o processo é tão volumoso que certamente poucos serão aqueles, para além dos directamente interessados, que o conhecerão com rigor. Só a acusação se estende por 14804 artigos e 3908 páginas.

Neste caso, como em todos, seria bom que as pessoas tivessem algum cuidado antes de falar; pelo menos, leiam a acusação, se tiverem paciência. E tentem não falar dos factos e das provas que constam ou não do processo, pois disso sabemos muito pouco.


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