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Terça-feira, Julho 16, 2024

Juízes Sindicais e Conselho da Magistratura

Nuno Ivo Gonçalves
Nuno Ivo Gonçalves
Economista, Mestre em Administração e Políticas Públicas, Doutor em Sociologia Política. Exerceu actividade em Gestão Pública, Recuperação de Empresas, Auditoria e Fiscalização e foi docente no ISE e no ISG. Investiga em História Contemporânea.

Órgãos jurisdicionais internos em partidos e sindicatos

A nossa actual estruturação da vida democrática assegura a partidos e a associações sindicais grande autonomia em relação ao poder político e à Administração Pública, mas obriga-os, e aos seus órgãos, inclusive jurisdicionais, à observância dos princípios da organização e da gestão democráticas.

Na Lei dos Partidos Políticos as orientações são claras, a existência de um órgão de jurisdição é obrigatória, a tramitação de impugnações e recursos através deste também e o Tribunal Constitucional, que apenas se debruça sobre decisões já tornadas definitivas tem uma influência muito efectiva – o número de partidos é pequeno e o Tribunal está no topo do sistema judicial – mesmo não regulando a lei a composição dos órgãos de jurisdição e as suas regras de processo (Cfr Lei Orgânica nº 1/2018, de 19 de Abril, Artigos 5º – Princípio Democrático, 30º – Deliberações de órgãos partidários, 34º- Procedimentos eleitorais).

Tribunal Constitucional

No Código de Trabalho, seguindo aliás a Constituição, também está consagrada a sujeição das associações sindicais aos princípios da organização e da gestão democráticas, no entanto o contencioso dos conflitos internos das associações sindicais está regulado por normas do Código do Processo de Trabalho que também se aplicam às instituições de previdência, associações de empregadores ou comissões de trabalhadores, com uma estipulação de que a invalidade das deliberações e outros actos pode ser declarada em acção intentada para o efeito, “salvo se dos mesmos couber recurso”.

No entanto o Código de Trabalho nos órgãos que obrigatoriamente devem estar previsos nos estatutos das associações sindicais apenas indica um “conselho fiscal” sem explicar se este deve ser ou não também um órgão de jurisdição interno.

Nestas circunstâncias a gestão interna de conflitos pode ser difícil e quando se passa à impugnação judicial, a lei defere aos Tribunais de Trabalho, que estão sobrecarregados com litígios nas relações laborais, a apreciação dos processos, com prazos muito diferentes dos que a lei consagra para a generalidade das associações.

 

A função jurisdicional dentro dos órgãos sindicais – dilemas do SNESup

A constituição em 1989 do Sindicato Nacional do Ensino Superior (associação sindical de docentes e investigadores), abreviadamente designado por SNESup(i) fez-se sem grande reflexão prévia sobre a função jurisdicional num sindicato cujo processo de nascimento comportava mais motivações profissionais que político – sindicais.

O órgão criado para preencher o papel de órgão jurisdicional. a Comissão de Fiscalização e Disciplina, embora dotado de poderes para suspender e anular deliberações de outros órgãos não foi frequentemente chamado a exercê-los e na sua composição inicial, que prevendo uma totalidade de 15 lugares de membros efectivos, a preencher por eleição proporcional, assegurou sobretudo a participação de personalidades envolvidas num projecto de sindicato autónomo mas que não desejavam ou não estavam disponíveis para integrar os Corpos Gerentes – Direcção e Conselho Nacional(ii).

Uma primeira revisão de Estatutos em 1993, reduziu o órgão a 9 efectivos, mantendo a representação proporcional, e previu a existência de uma Comissão Permanente com poderes delegados. Deve-se no entanto dizer que até 2014, isto é durante os primeiros 25 anos do SNESup continuou a existir uma única lista em todas as eleições para a Comissão de Fiscalização e Disciplina sem que as eleições fossem necessariamente condicionadas pela eleição das Direcções, também por lista única. Geralmente um ou dois associados chamavam a si a organização de uma lista para a Comissão, comunicavam a iniciativa a quem percebiam estar envolvido na organização de lista para a Direcção seguinte e as equipas iam coexistindo com um outro momento de difícil relacionamento ou um outro período de apagamento, que lançava dúvidas sobre a quem competia a fiscalização da acção sindical ou até sem emissão de parecer sobre os Relatórios e Contas, que só a partir de 2010 começaram a ser publicados no sítio do Sindicato na Internet(iii).

Os momentos de difícil relacionamento derivaram algumas vezes da pouca sensibilidade de membros da Comissão à mecânica da actividade sindical, o que sugeria poder haver interesse em atrair para o órgão pessoas com experiência de participação em Direcções, Mesas de Conselho Nacional e até anteriores Comissões de Fiscalização e Disciplina que se tivessem desligado entretanto da atividade sindical. Também a falta de circulação de informação e de debate interno inibiram a apresentação de candidaturas representativas de várias correntes de opinião, apesar de no projecto inicial do sindicato, que se queria plural, o órgão estar vocacionado para a representação de tendências.

Nos mandatos bienais posteriores à revisão dos Estatutos de Carreira Docente coexistiram com as Direcções, diversas Comissões de Fiscalização e Disciplina cujos membros detinham valências nas áreas científicas de Direito e Contabilidade e, sem surpresa, começaram a questionar aspectos tais como a organização das Contas(iv), a aquisição de imóveis para sedes(v), o funcionamento do apoio jurídico. A divulgação de posições da Comissão, sobre as contas de 2014 e sobre aquisições das sedes na Revista do Sindicato, levou o grupo organizado em torno da Direcção em funções a aproveitar as eleições seguintes para tentar substituir os fiscais perturbadores por gente do próprio grupo.

Simultaneamente por esta via as Direcções ficavam libertas de parte dos “históricos” que desde há muitos mandatos ocupavam lugares nas listas, transferindo-os para as Comissões dando uma aparência de renovação. Queria isto dizer que os ex-dirigentes “transferidos” para fiscais, começavam – era quase uma praxe – por se pronunciar (favoravelmente) sobre o Relatório e Contas relativo à última das suas gerências sem que tal lhes levantasse problemas de consciência.

O primeiro Presidente da Comissão no novo ciclo, tendo conquistado 6 lugares dos 9 estatutários, começou por fazer adoptar um regulamento de funcionamento em que a Comissão Permanente, com poderes delegados, tinha 6 lugares. A Comissão elaborou regularmente actas mas flexibilizou a verificação de presenças nas reuniões, chegando uma destas a ser secretariada a partir de Espanha.

O segundo Presidente da Comissão do novo ciclo foi Paulo Peixoto, destacado da Direcção para o efeito pelo Presidente desta, Gonçalo Velho e que para aceitar a posse no novo órgão teve de ceder, por incompatível, a orientação da Revista do Sindicato que assegurava há largos anos(vi). Invocando orientações do antecessor e verificando-se igualmente resultados eleitorais de 6 e 3, manteve a Comissão Permanente com o mesmo formato. Numa actuação inédita, e forçou a recondução da vice-presidente do antecessor sem recurso a voto secreto, e registando-se empate quatro a quatro, declarou usar de um voto de qualidade como presidente, apesar de ainda não ter tomado posse.

 

Um “Parecer” exemplar

Desvinculei-me do SNESup em 2011, em carta dirigida à sua Direcção, que não me perguntou as razões. Durante 2012 intervim a vários níveis, em articulação com o sindicato na luta para repor a progressão nas carreiras dos colegas das universidades e que politécnicos públicos que tivessem realizado o doutoramento ou adquirido o título de especialista. Quer isto dizer que alguns comunicados assinados pelo SNESup foram escritos por mim, que algumas das mensagens enviadas por correio electrónico e assinadas por dirigentes em 2012 foram escritas por mim, que o texto da petição on line que reuniu 5 000 assinaturas foi da minha lavra com um contributo de um colega que entretanto se afastou da Direcção, que participei nos contactos parlamentares (António Vicente, então Presidente desta, e eu fomos recebidos por Guilherme Silva, em substituição da Presidente da AR e que falei com alguns deputados-chave, inclusive para assegurar a correcção de um texto que a AR acabou por aceitar incluir no Orçamento de 2013 em 2012.

Nos anos seguintes fui dando as minhas opiniões, geralmente mal acolhidas. Aposentei-me em 2014 e em 21 de Outubro de 2015, uma vez que os Estatutos previam expressamente que os aposentados que tivessem sido docentes do ensino superior ou investigadores se pudessem inscrever – ou reinscrever – no SNESup, pedi a reinscrição, que nunca me foi dada(vii), criando-se uma situação que me levou a manter uma maior atenção à evolução interna do SNESup do que esta merece a muitos associados.

Estando a correr prazo para apresentação de propostas a votar em Assembleia Geral dois colegas meus, que haviam sido Presidentes do Conselho Nacional e da Mesa da Assembleia apresentaram em 9 de Novembro de 2015 uma proposta do seguinte teor:

Considerando que os Estatutos do SNESup na alínea c) do nº 1 do Artigo 5º estabelecem que se podem inscrever no Sindicato os colegas que “tendo exercido actividades profissionais abrangidas pelo Sindicato se encontrem na situação de licença, de baixa, de reforma ou de aposentação”.., 

Considerando que se reinscreveu no passado mês de Outubro no SNESup, apresentando toda a documentação necessária, o colega Doutor Nuno Ivo Gonçalves, com quase nove anos de contrato como docente no então Instituto Superior de Economia e com quase vinte e cinco anos de anos de contrato no Instituto Superior de Gestão, que terminaram em Julho de 2010 (cfr. cópia do requerimento de reinscrição)

 

Propomos que a Comissão de Fiscalização e Disciplina ouça por escrito o Presidente da Direcção e o requerente da reinscrição, analise a questão do ponto de vista dos Estatutos do SNESup, e, não estando a reinscrição consumada, faça agendar para nova Assembleia Geral a discussão de um relatório e de uma proposta que elaborará.

A proposta não foi votada na Assembleia Geral marcada para 27 de Janeiro de 2016 porque o Presidente desta – que pertencia também à Direcção – o impediu, acabando por ser marcada por sentença de primeira instância, confirmada pela Relação de Lisboa, uma Assembleia Geral para 20 de Março de 2017 que a aprovou. Seguiu-se uma nova acção para condenar o SNESup a cumprir a deliberação da sua Assembleia Geral na pendência da qual se verificou a eleição da Comissão que veio a ser presidida por Paulo Peixoto e em que se criou uma situação que merece ser narrada.

Decorrido o primeiro ano de mandato e havendo que dar resposta a perguntas da juíza do processo, o Presidente da Direcção Gonçalo Velho veio reunir com a Comissão de Fiscalização e Disciplina fazendo Paulo Peixoto exarar em acta que a Comissão desconhecia completamente que houvesse uma deliberação de Assembleia Geral por cumprir e que iria ouvir imediatamente – estávamos em 2019 – os interessados, ou seja, o Presidente da Direcção e o requerente da reinscrição que no entendimento dele não era esse tal Nuno Ivo Gonçalves mas os subscritores da proposta entregue em Novembro de 2015 e aprovada em Março de 2017(viii).

Não nego que é possível encontrar em lugares de responsabilidade gente com formação superior que é incapaz de interpretar textos relativamente simples, ou de identificar as partes relevantes ou desconhecedora de elementares princípios processuais, no entanto:

  • Paulo Peixoto não é um matumbo, é um sociólogo da cultura, quase catedrático(ix), com alguma internacionalização;
  • Paulo Peixoto foi presidente da Direcção durante um mandato em que fui “um dos seus vários vice-presidentes” segundo o ouvi uma vez dizer, sendo que lhe devo nas minhas deslocações a Coimbra e não só, numerosas atenções pessoais;
  • Paulo Peixoto colabora permanentemente com o Observatório Permanente da Justiça e chegou, creio, a ministrar provas aos formandos do Centro de Estudos Judiciários, sendo também activo num Observatório da Fraude Académica.

O parecer que em 16 de Dezembro de 2020, isto é, ano e meio depois destas “audições”, estando já proclamada eleita a Comissão seguinte, fez aprovar numa reunião virtual da Comissão a que presidiu(x), o qual mostra desconhecimento de normas estatutárias básicas e afirma factos inexistentes, mas foi, não obstante, dado por aprovado, sendo o próprio Peixoto a fazer e a aprovar acta, já não existe juridicamente, pois foi anulado, creio que em Janeiro do presente ano – foi quando me chegaram as suas peças – sem ter havido recurso. O SNESup pagou as custas, que em casos destes me parece deveriam ser pedidas aos titulares dos cargos cuja acção foi desautorizada.

Conselho Superior Magistratura

Neste momento a Comissão de Fiscalização e Disciplina é presidida por um químico-físico que teve de aceitar a vice-presidente dos seus antecessores, mas isso são outros contos.

Se o funcionamento dos órgãos de jurisdição internos de partidos (houve um caso recente que não analisarei aqui) e de sindicatos, não pode ser assegurado sem prejudicar a justiça, talvez faça sentido sujeitá-los a inspecções de um dos Conselhos da Magistratura e a procedimentos de confirmação ou retirada da idoneidade dos participantes.

 

Notas

(i) No Jornal Tornado de 10 de Novembro de 2021 , conferir A Participação Sindical Decresce Quando a Democracia se Esvai

(ii) Veja-se a participação de Manuel Vilaverde Cabral e de Carlos Brito Mendes, que haviam presidido à Direcção da Associação Portuguesa do Ensino Superior, estrutura sem carácter sindical criada em 1983 cuja constituição precedeu de certo modo a constituição do Sindicato. No Jornal Tornado de 18 de Dezembro de 2019, conferir o artigo Associações Científicas ou Profissionais

(iii) Decisão tomada durante dois meses em que fui Presidente da Direcção do SNESup, tendo sido localizados e publicados todos os relatórios anteriores.

(iv) As Contas de 2014 tiveram parecer negativo da Comissão porque o Gabinete de Contabilidade não estava a aplicar o novo Plano de Contabilidade já exigível, o que, sendo pouco grave, suscitou grande emoção, sendo de notar que pelo contrário não foi questionado no parecer – e deveria tê-lo sido – o modo como o Sindicato vinha a investir os seus recursos – 430 mil euros aplicados no grupo BES. O SNESup, benemérito ou lesado do BES e do Novo Banco?

(v) A propósito, um apontamento sobre a sede do Porto 350 mil euros para mudar a sede do SNESup no Porto

(vi) Em consequência a Revista, cuja periodicidade era em princípio trimestral, saiu com um número duplo em que Paulo Peixoto aparecia como director num trimestre e ninguém ocupava o cargo no trimestre seguinte!

(vii) Chegou a haver uma carta de recusa, que a Comissão de Fiscalização e Disciplina ainda em 2016 considerou anulada por falta de fundamentação.

(viii) O primeiro subscritor respondeu-lhe que o requerente da reinscrição era Nuno Ivo Gonçalves, a segunda terá sido contactada no endereço de correio electrónico da Faculdade de onde já se tinha aposentado, é assim, parece, que no SNESup se consideram ouvidos os interessados.

(ix) Professor associado com agregação.

(x) Cuja gravação foi requerida na impugnação mas não chegou a ser fornecida.

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