1917 – 2007
Corajosa figura feminina da Resistência contra a ditadura, e da luta anti-colonial, foi uma mulher de invulgar personalidade, verdadeiramente progressista, já que de ideias muito avançadas para o seu tempo. Humana, solidária e de grande sensibilidade.
Maria Julieta Guimarães Gandra nasceu a 16 de Setembro de 1917 em Oliveira de Azeméis e formou-se em Medicina, em Lisboa. Aí conheceu Ernesto Cochat Osório, natural de Angola, com quem veio a casar e a ter um filho. Em meados dos anos 40, o casal parte para Angola.
Em Angola
Em Luanda, nos anos 40 e 50, atendia no seu consultório médico as senhoras da sociedade colonial e depressa se tornou conhecida como médica ginecologista. Atendia, no seu consultório da Baixa Luandense, as mulheres da elite branca e, nos musseques, as mulheres angolanas, circulando, com igual desenvoltura, nos dois meios.
Frequentava o Cine Clube e a Sociedade Cultural de Angola, convivendo com diversos intelectuais que iriam estar na origem do Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA).
Durante a campanha presidencial de 1958, num comício de apoio a Humberto Delgado, dirigiu-se, no início da sua intervenção, às «mães negras», essas que tão bem conhecia do seu trabalho enquanto médica. Presa no Verão do ano seguinte, outras mães, essas brancas, viriam a exigir que continuasse a prestar-lhes assistência – o que as autoridades, surpreendidas, acabaram por permitir (Ler testemunho, abaixo).
Acusada de conspirar contra a segurança do Estado, bem como de pertencer ao Partido Comunista, em 1959 foi julgada em Tribunal Militar, em Luanda, integrada no chamado «Processo dos 50», o primeiro julgamento do colonialismo português.
Sem poder contar sequer com o apoio de um advogado – já que o seu fora detido em Lisboa quando se preparava para embarcar – foi condenada a 12 meses de prisão, pena que foi agravada para 2 anos de prisão maior e medidas de segurança de 6 meses a 3 anos. Julieta Gandra recorreu e o novo julgamento, desta feita em Lisboa, iria aumentar-lhe a pena para quatro anos de prisão maior e medidas de segurança[1].
Em 1964, a cumprir pena em Caxias, com a saúde muito debilitada, foi escolhida como «prisioneira do ano» pela Amnistia Internacional, saindo em liberdade em Julho de 65. Fica então a viver em Lisboa, numa casa que cedo se torna ponto de encontro de activistas e militantes anti-coloniais.
Abre consultório na Rua Manuel da Maia, onde continuou o seu percurso de médica ginecológica, dando apoio a quem podia pagar e a quem não podia.
Após o 25 de Abril
Após a Revolução de 25 de Abril e a independência de Angola, volta àquele país no início de 1975, na companhia de sua companheira de prisão e de vida, Fernanda Tomás, com o fim de ajudar a estabelecer as bases do Serviço Nacional de Saúde.
Regressou a Portugal em 1978 por razões de saúde, com algumas deslocações posteriores a Londres para exames médicos.
Em 8 de Outubro de 2007 faleceu com 90 anos, depois viver alguns anos numa residência de idosos.
«A Dra. Julieta Gandra era médica da minha mãe, já a tinha assistido logo a seguir ao meu nascimento, depois ao parto da 3ª filha e estava a seguir a 4ª gravidez quando a prenderam. O pânico que se gerou entre as mulheres que se viram assim desamparadas foi potenciado pelo sentimento de grande revolta pela pena que sofria aquela mulher extraordinária.
A minha mãe, que nunca foi mulher de se deixar abater pelas contrariedades, decidiu agir. Com uma amiga tão intrépida como ela, e sem avisar sequer o meu pai, apresentaram-se na PIDE e pediram para falar com o director, porque queriam ver a médica que estava presa. O funcionário ficou perplexo e começou um relambório a avisar que era melhor “as senhoras não se meterem nisto, ela é comunista, vão para casa se não querem ter sarilhos…” A minha mãe, exibindo os seus 6 meses de gravidez, sentou-se. “- Vou ficar aqui até a criança nascer. Tanto me faz ter a criança aqui ou em casa, desde que seja a Dra. Julieta a assistir-me.”
O Director recebeu-as, mandou chamar o meu pai, que apanhou um susto de morte quando lhe falaram da PIDE a dizer que a mulher estava lá. Largas horas depois, a teima da minha mãe não tinha desarmado. Vasculhada a vida deles e provada que nada constava de suspeito nos ficheiros, levaram-nos ao Hospital, onde ela estava num quarto com a janela cruzada por tábuas de madeira, lendo na penumbra. Ficou então combinado que ela podia ir a nossa casa no dia do parto ou em caso de urgência, desde que acompanhada de segurança e ficando o meu pai responsável caso houvesse qualquer tentativa de fuga.
Poupo-vos aos detalhes da tempestade doméstica que esta iniciativa desencadeou, mas a verdade é que, nos princípios de Setembro de 1960, a nossa casa estava rodeada de polícia a Dra. Julieta assistiu às longas horas do dia e da noite em que se prolongou o nascimento. O reboliço na rua juntava pessoas que se perguntavam quem é que ia ser preso ali, até que o PIDE de guarda acalmou os ânimos, puxando uma fumaça do cigarro: – “Não há novidade. É só uma criança que quer nascer em segurança…”
A história espalhou-se como pólvora. E, a partir daí, outras mulheres exigiram igual privilégio, e a Dra. Julieta foi autorizada a sair da prisão sempre que uma das suas clientes pedia a sua preciosa ajuda.»
in Tabanka do Huambo
[1] Testemunho de um médico no blogue Tabanka do Huambo, sobre a prisão de Julieta Gandra, em Luanda
Biografia da autoria de Helena Pato, a partir de:
- Julieta Gandra, uma mulher
- Caminhos da Memória – Julieta Gandra
- Tabanka do Huambo
- Clara Castilho, Maria Julieta Gandra, uma mulher de coragem
- Angola: Processos Políticos da Luta pela Independência, Maria do Carmo Medina. Editora Almedina, 2011.