Idealizado pelo Dr. Franco da Rocha, o hospital – que completou 122 anos – não foi só dor. Também abrigou sonhos, vidas, pessoas, histórias e amores.
Eu não sei se houve um outro lugar que recebeu tantos excluídos como o Vale do Juqueri de 1898 até hoje. E não sei se alguma outra cidade que foi fundada praticamente por causa de um hospício, mas nasci e cresci dentro dessa realidade, em um lugar tão bonito e de tão bom ar que fora dos seus muros era impossível imaginar tanta dor.
Contudo, o Juqueri não foi só dor! O hospital – que completou 122 anos em 18 de maio passado – também abrigou sonhos, vidas, pessoas, histórias e amores. Sua história tem muito a ensinar, ainda mais em tempos de uma crise como a do novo coronavírus, tão mortal quanto a pandemia de gripe espanhola que o Juqueri enfrentou em 1918. A diferença é que, nos dias de hoje, a doença está sendo usada por um governo fascista para destruir a população marginalizada – os negros, os indígenas e os pobres.
No final do século 19, o Dr. Franco da Rocha, nascido em Amparo (até o nome de sua cidade natal diz para o que ele veio ser), escreveu uma carta ao governador. Pedia que o governo paulista construísse um novo hospital de alienáveis. Sim, era assim que se chamavam as pessoas com problemas mentais, embora pareça ser o adjetivo aplicado aos bolsonaristas.
O hospital que ele dirigia em São Paulo estava lotado e tinha o formato de uma prisão com grades. Dr. Franco da Rocha era um sonhador, médico e cientista. Imaginou essas pessoas – invariavelmente tratadas como lixo humano – vivendo em colônias, em contato com a natureza, independentes o suficiente para executarem pequenos trabalhos e darem a si mesmas o próprio sustento. Uma verdadeira comuna!
O Brasil daquele período – país recém-republicano, com grande influência positivista e eugenista – ainda precisava dar uma resposta à sociedade sobre o destino dos negros libertos, fora os “deficientes” e outros descartados por uma visão de civilização racista, discriminatória e doente.
Para o governo, era conveniente fazer um hospital de contenção em um lugar idílico, mas fora da zona central da metrópole. Já para o doutor, era uma maneira de aprofundar seus estudos e suas pesquisas, já que a ideia do que era um doente mental ainda precisava ser mais definida.
Porém, Franco da Rocha era um humanista e queria ver essas pessoas simplesmente felizes. Dentro de sua formação positivista, habitava, no fundo, os princípios de Rousseau. Os doentes viveriam no Juqueri livres, próximos à terra, abraçados às arvores, pescando e plantando.
Ele procurou um lugar onde pudesse viabilizar seu plano. Viu um rio tão límpido e sereno, margens plenas de mata, muitas flores no sopé de um conjunto de morros cobertos de Cerrado campestre. A vegetação do Cerrado era diferente de toda a vegetação da capital – e era mais fácil de lidar do que a Mata Atlântica. Não seria preciso desmatar tanto e os doentes teriam espaço, contato com a terra vermelha, flores campestres e cheirosas para colher, pássaros aos montes para ouvir, peixes frescos para pescar no rio, estrelas à noite para se deslumbrarem junto a uma enxurrada de vaga-lumes. Pronto, o Paraíso.
Era preciso que esse lugar também tivesse uma via de acesso fácil. No vale às margens daquele rio, havia uma estação de trem inaugurada em 1888. Não sei se por acaso ou de propósito, o fato é que o hospital do Juqueri foi construído no centro das duas linhas metropolitanas, fixando-se exatamente no eixo central entre Campinas e Santos, Sorocaba e São José dos Campos.
Com projeto arquitetônico de Ramos de Azevedo, o Juqueri nasceu com a concepção mais inovadora e humanista no tratamento psiquiátrico que apareceu no mundo até então. Dr. Franco da Rocha era apaixonado por rio e imaginava exatamente ali um lugar não só para trabalhar – mas também para viver e pescar (atividade que amava). Além de construir o Juqueri para abrigar seus pacientes, ele se mudou com a família para as dependências da instituição. Lá, criou seus seis filhos e viveu por 30 anos.
Sob sua gestão, o Juqueri se mostrou eficiente em dar dignidade a quem de tudo havia sido tirado. Os internos viviam em regime de laborterapia (aliás, ela foi criada no Juqueri, a precursora da Terapia Ocupacional), plantando a própria horta, cuidando de pequenos animais, fazendo os próprios móveis, sapatos, roupas, sabão e pão. Logo foram inauguradas a marcenaria, a oficina de costura, a sapataria e a padaria. Todos os serviços de manutenção e limpeza eram feitos pelos funcionários, em colaboração com os internos.
Se hoje esse regime, muito semelhante às colônias de tratamento para dependentes químicos, parece ser exploratório, naquele momento significava um avanço. Antes de sua implantação, as pessoas eram simplesmente presas, jogadas e confinadas sem nenhuma atividade, liberdade ou dignidade.
A jardinagem foi outra atividade estimulada, a exemplo dos esportes, como o atletismo, a ginástica e, sobretudo, um que estava nascendo: o futebol. Enquanto a população mais pobre e operária lutava pelo direito a jogar futebol, o Dr. Franco da Rocha fez um campo na beira do rio Juqueri. Os internos podiam ter seus times – e comumente essas equipes permitiam a mescla e a interação com os funcionários. Palco de jogos incríveis, o gramado do campo – e que gramado! – era superior ao de muitos estádios brasileiros.
Vivi no Juqueri – dentro e ao redor dele. Lá dentro, o ambiente do início do século 20 nunca passou. Toda vez que ia visitá-lo, eu tinha a sensação de que ali o tempo e o espaço haviam parado na Belle Époque, talvez porque o Juqueri – muito mais do que a São Paulo de Caetano Velloso – tivesse sido o “avesso do avesso do avesso”.
Ali, por muito tempo, coexistiram uma estação de trem e um rio recheado pela planta de nome indígena Yuqueri – aquela que te faz cantar uma canção de ninar para ela dormir, roçando delicadamente seus dedos em sua superfície aveludada. Esse lugar perdido no meio do caminho à metrópole, passagem de tropeiros, esconderijo do Cerrado, passou a ser a desembocadura dos mais frágeis e indesejáveis seres humanos do século 20.
Por que o tempo ali iria passar? O macacão amarelo dos trabalhadores, os móveis do início do século passado, o relógio de ponto daqueles de ferro e de alavanca pesada, as máquinas de escrever – tudo ali respirava os idos de 1900.
Porém, ao participar do nascimento da psicanálise como ciência, o Juqueri ajudou a inventar o século 21. Sigmund Freud, o pai do método psicanalítico, correspondia-se cientificamente com o Dr. Franco da Rocha e o Dr. Osório Cesar. O médico que deu nome para a cidade foi o primeiro brasileiro a traduzir Freud para a língua portuguesa.
No Juqueri, ao longo de 122 anos, nasceu a psiquiatria infantil, a terapia ocupacional, a neuropsicocirurgia, os estudos mais avançados sobre o cérebro e principalmente a arteterapia. Até hoje, ignoram as inovações do Juqueri na terapia através das artes plásticas – um pouco antes, por sinal, de Nise da Silveira. É uma injustiça histórica.
Graças à influência do Dr. Osório Cesar, médico e crítico de arte, e de sua esposa, a grande pintora Tarsila do Amaral, o hospital abrigou uma escola de artes. O casal chegou a levar a exposição de artistas do Juqueri para a França – nomes como Bira ou Aurora Cursino alcançaram notoriedade como artistas. Pode-se dizer que Tarsila encontrou na expressão dos internos a arte na expressão mais pura e ingênua que os modernistas procuravam – o viés de intersecção entre a realidade e o sonho dos surrealistas.
Diferentemente da experiência de Nise da Silveira, a escola de artes idealizada pelo Dr. Osório César buscava fazer da atividade artística uma forma de terapia não invasiva e, mais do que isso, dar subsídios técnicos e teóricos para descobrir talentos. Hoje, o acervo artístico do Juqueri conta com mais de 5 mil obras de autoria dos doentes nestes 100 anos adormecidos.
Dr. Franco da Rocha queria que pacientes, funcionários e médicos vivessem em comunhão e criou a Vila dos Médicos, para que todos pudessem morar onde trabalhavam. Em 1929, pensando nas mães funcionárias, inaugurou uma creche, espaço único para a Educação Infantil dos filhos pequenos dessas mães, com muito verde e brinquedos de madeira. Comumente, os doentes também interagiam com as crianças.
Nos idos de 1910, Beatriz, minha bisavó portuguesa, veio com a família para trabalhar no hospital e virou a engomadeira (passava a roupa) do Dr. Franco da Rocha. Mas seus familiares não se adaptaram ao Brasil e resolveram voltar para Portugal. Beatriz ficou. Com seu suor, conseguiu pagar as passagens dos pais e irmãos. Como ela não tinha 18 anos ainda, Dr. Franco da Rocha se tornou seu tutor.
Pouco depois, Beatriz conheceu meu bisavô – um italiano marceneiro do hospital que também vivia ali com a família. Em Portugal, sua família exigia que ela terminasse o namoro e voltasse para sua pátria. Se não fosse a intervenção do Dr. Franco da Rocha – que convenceu os pais de Beatriz a deixá-la se casar –, talvez eu não estivesse aqui hoje.
No mais, meu avô e minha avó paternos trabalharam no Juqueri – ele no tratamento interno de água, que serviu de modelo para a Sabesp; ela como chefe da cozinha que produzia refeições para 18 mil internos. Distribuída por dois andares enormes, essa imensa cozinha tinha panelas gigantes. Cerca de 8 quilos de alho eram descascados ali por dia. Toneladas de comida eram feitas com sabor e amor – a melhor comida de hospital que já provei. Minha avó contava que os doentes vinham beijar suas mãos em forma de agradecimento pelo alimento com cheiro e toque caseiros que ela preparava.
A casa da minha infância fez parte da segunda colônia construída pela instituição, na qual minha família paterna viveu por 23 anos. Essa colônia ficava onde hoje é o Parque Estadual do Juqueri, o lugar mais milagroso do mundo, pois sobreviveu selvagem no meio da metrópole. É a última reserva de Cerrado da Grande São Paulo – e talvez um dos últimos de todo estado –, onde foram redescobertas espécies que estavam dadas como extintas há mais de 50 anos. Lá tem! O Parque Estadual do Juqueri é o espaço permanente do meu eu, da minha essência e dos meus sonhos.
A casa velha e assombrada que moramos foi construída em 1909. Minha árvore amiga tinha 30 metros e 200 anos, meu quintal era pré-histórico. Todos os fantasmas viviam normalmente e até tomavam café na cozinha com a gente. As chuvas derrubam cercas, mas as árvores gigantes que caíam em cima do nosso telhado não destruíam a casa.
O rio Juqueri, o mesmo da beira do hospital, ainda nos alimentava com seus lambaris e esconderijos da imaginação. A mata que separa nossa casa do rio era Mata Atlântica pura, cheias de saguis e cabelos e pentes de macaco. Era habitação de muitos seres fantásticos – fadas, duendes, Chiquitos, Mus e ninfas. Porém, as ninfas, como os sacis, também moravam nas árvores do Cerrado – que, para mim e meus irmãos, tinham nomes, datas de aniversários, músicas e bocas para conversar com a gente.
Por sua filosofia à frente do Juqueri, o Dr. Franco da Rocha criou não apenas um modelo de hospital – mas quatro cidades. Os internos realizavam a manutenção elétrica e hidráulica, inclusive da nossa casa – e vinham nos visitar sempre. Dentro de suas paredes, a casa respirava mistério, sobrenatural e mofo de tempos doídos, solitários e perenes que teimavam em se fixar nas cascas da tinta que eu descascava com as unhas.
Meu coração batia por essa construção de 1909 tal qual bate por um time fundado em 1910 – e emanava, com outros corações que ali moravam, esse mesmo amor. Toda as noites, eu sonho que volto para ela e consigo enxergar meu avô ali à porta, sentado em sua cadeira, o portãozinho azul para os cachorros não entrarem, o balcão de mármore branco onde minha avó batia a massa de bala de coco, o aquecedor elétrico de café no bule de alumínio dando as boas-vindas para quem se achegasse.
Na parede acima da pia vermelha, as panelas penduradas nos pregos e as pimentas cumaris em conserva. O chão era o vermelhão, mas brilhava tanto que refletia nossos rostos. Para chegar à sala, percorríamos um corredor longo. As portas dos quartos eram daquela madeira bem grossa. O chão dos quartos era de tacos de madeira e adorávamos empilhá-los como se fossem quebra-cabeças ou blocos. Da janela do meu avô e da minha avó, via-se um mundo de 39 pés de goiabas tão velhos quanto a casa. Pés de goiaba vermelha e branca, troncos cascudos, árvores enormes, cada uma virou uma nave espacial – a minha era a menor de todas. Um balanço para acompanhar, um banco para sonhar… meus poemas sempre terão esse canto.
Definitivamente, o Juqueri não foi apenas tristeza e morte. Se isso aconteceu, foi porque políticos e ditadores passaram a usá-lo como campo de concentração e de extermínio. Sou prova inconteste de que, por mais que o transformaram em lugar das sombras, muito dos seus funcionários ainda mantinha a filosofia e o sonho do Dr. Franco da Rocha, tentando dar aos que ali moravam um pouco de dignidade e esperança.
Hoje, as pessoas, principalmente artistas, tentam reconstruir de dentro para fora seus espaços abandonados ao vento e ao mato. Há um movimento que, uma vez por ano, faz ali, em suas dependências, o maior festival de artes da região: Soy louco por ti, Juquery! O evento reúne artistas do Brasil todo, de diferentes gêneros, para ocupar e ressignificar seus cantos, suas paredes.
Termino este texto rememorando uma imagem emblemática de como o Dr. Franco da Rocha tratava os pacientes. O busto em sua homenagem foi a única coisa que escapou do incêndio que destruiu o seu prédio central, os arquivos de todos os pacientes e a mais completa biblioteca de psiquiatria da América Latina do início do século 20! O médico que criou seus filhos no Juqueri pega na mão de uma paciente que ali chegara e que se dizia uma exímia bailarina. Ele a tira para dançar por seu imenso e belo jardim, como se também louco fosse.
Texto original em português do Brasil
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