Tinha tantas artes e tal bondade que corpo pequeno não podia ter. Com tamanha valentia, igual a poucas, nos amou, que outro apelido mal lhe assentaria.
Parecia um pão enorme e fofo que Deus colocou à mesa dos sedentos do belo, da paz e do amor. Era assim e assim será o MESTRE MALANGATANA. Há gente que a morte consegue levar até da memória dos homens, porque aos homens nada legaram. Porque legou, nenhuma morte é suficientemente valente para nos tirar o Mestre de todas as lições e incontáveis sabedorias. De mil maneiras fez a mesma coisa, como o lembra o mano Mia: “contou histórias com cores humanas, gosto moçambicano e prosa do mundo”. Sei que o mano Couto verá sair dos seus dedos, a seu modo bonito e de discípulo, num desses dias doces que Moçambique tem, fios de louvor e saudade, que pecarão por insuficientes, ante o desmedido Mestre. Mas mesmo assim aguardamos, para subscrever e contemplar essa coroa de flores feita palavras ante a campa onde não cabe o MESTRE MALANGATANA. Sinto que o Wazimbo lhe cantará algo para lá do sublime “Nwahulwana”, que fará o Zambeze amainar a fúria pela ida do Mestre. Mas seja com que palavras e melodia criar, para que nos juntemos ao canto, rogamos que lhe dê o refrão: Kanimambo Malangatana.
Sofro por não ter arte suficiente para cantar o Mestre. E este sofrimento é tanto maior pelo tanto que lhe devo e devemos. A minha divida pessoal para com o Mestre é esta que vos vou contar.
Durante a expo 98, em Lisboa, o pavilhão da Guiné-Bissau recebeu inúmeras visitas de ilustres personalidades. Na qualidade de Comissário Adjunto da representação guineense, recebi e conduzi muitos desses visitantes ao nosso pavilhão. Certo dia informaram-me que o Mestre Malangatana ia visitar o nosso pavilhão mais algumas destacadas personalidades da cultura portuguesa. Como sempre, preparamo-nos o melhor que pudemos. Quando era aproximadamente meio-dia, vimos chegar de outras visitas a pavilhões vizinhos, aquela figura que de tão humilde e humana esmaga qualquer veleidade de o descrever com justa verdade.
Nós à procura do máximo decoro protocolar na recepção, sem nos darmos conta, o Mestre já levava consigo uma boa parte da delegação a dançar ao som do Kora que ecoava à porta do pavilhão. O nosso Djidiu (griot), como se soubesse do privilegio único que lhe estava a ser presenteado, ergueu-se, atirou a voz acima da oitava, enquanto tirava sons das entranhas do continente nosso, via vinte e duas cordas do ancestral Kora. Perdi a pele de Comissário e vesti a da emoção, admiração e orgulho. Esses minutos de som e Malangatana, enquanto a guerra destruía a fraternidade entre os guineenses, ofereceu-nos a certeza de que a paz voltaria um dia, como hoje está a voltar. No pavilhão, durante a visita, falava e questionava com tanta familiaridade sobre os objectos e características das diversas culturas que integram o todo guineense, que na maioria dos casos, me limitei apenas a dizer sim a isto, àquilo e aqueloutro. No culminar da visita, convidamos a delegação a assistir à projecção de um curto documentário sobre as potencialidades da Guine-Bissau. A seu lado, longe do filme, rendido à sua glória e humanidade, na penumbra e silencio do pavilhão me sussurrou, num tom arqueado e serenamente forte: “Quem sabe, se calhar algumas dessas pessoas no filme já foram mortas na guerra”. Entendi o quanto amava o seu semelhante e odiava a guerra.
Ao deixar o pavilhão ofereceu-me a mão, gorda, mole e fraterna, que apertei como quem quer ficar com a sua marca para poder criar tanta beleza como a que o MESTRE MALANGATANA VALENTE criou. Kanimabo Mestre. Até sempre.