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Domingo, Novembro 24, 2024

O Mediterrâneo, o Levante e os ventos que os animam

Beatriz Lamas Oliveira
Beatriz Lamas Oliveira
Médica Especialista em Saúde Publica e Medicina Tropical. Editora na "Escrivaninha". Autora e ilustradora.

Como serão os dias sem vento na bacia do mediterrâneo?

No caos da ventania, múltiplas civilizações surgiram e desapareceram na noite dos tempos.

O Quarteto de Alexandria, de Lawrence Durrell, que já referi antes como sendo um romance em quatro volumes que marcou a minha vida, conta a história de quatro personagens principais que se cruzam, se amam, se respeitam, se odeiam, se apoiam ou se destroem. Há outros personagens fulcrais um dos quais, Nessim, marido de Justine, funciona como um pivot que de certo modo aglutina todos os outros. Mas não há nenhum volume com o título de Nessim.

Justine, Clea, Balthazar e Mountolive descrevem, cada um deles, a sua visão do momento histórico que vivem, ou seja antes e depois da segunda guerra mundial. Descrevem também a sua própria história pessoal que se enovela na dos amigos. Mas nenhum dos quatro tem as mesmas memórias, nem das situações que viveram juntos, nem dos momentos em que afastados uns dos outros, sempre, por intermédio de um ou de outros, vão tendo de todos, notícias.

Fui-me identificando com todos os personagens, um a um, de todos me sentia próxima.

Estou completamente sozinha. Não sou feliz nem infeliz. Estou suspensa como um cabelo ou uma pena nas misturas turvas da memória.

Justine é o primeiro volume.

Nestes romances complexos o narrador é Darley, um escritor irlandês que vive em Alexandria e que será, suponho, o próprio  Lawrence Durrel.

Clea é o último volume e é já escrito na ilha de Chipre onde Durrell se refugiou durante a segunda guerra mundial. Clea é um fecho para a abertura de mais uma vez se ler o Quarteto de Alexandria.

A Chipre (retratada como uma outra ilha grega) chega mais um enigmático personagem, o barbeiro alexandrino, Mnemjiam que como todos os colegas de profissão é um mensageiro, um desenraizado que burila notícias.

É portador de uma mensagem de Nessim que faz com que Darley regresse ao Egipto. Nessim sabe que a mulher, Justine, foi amante do amigo.

De cada mais uma vez que reli os quatro volumes fui surpreendida por uma nova perspetiva, essa minha, que me fazia refletir no porquê de  não ter visto esse novo ângulo na leitura anterior. Também eu foi aspirada para sentir amor, ódio, antipatia, repulsa ou fascínio por um e outro personagem por quem na leitura anterior tinha tido sentimentos diferentes ou mesmo opostos.

Recomendei o Quarteto de Alexandria a alguns, poucos,amigos, que se tonaram igualmente leitores ardentes da trama histórica e das histórias.

Um dia fui a Menorca , a um congresso, e no pequeno porto de Mahon conheci um pescador  que falava várias línguas. Tinha a pele muito morena e curtida pelos ventos. Foi ele quem me contou, enquanto bebíamos um copo de vinho numa tasquinha nada turística, quais eram os ventos do Mediterrâneo.

Explicou-me, enquanto fumava o cachimbo, que há o Tramontano, um vento de norte, sopra da Grécia.

O Levante, vento que chega de leste. O Siroco/ Sirocco, ou vento suão, de sudeste, muito seco e muito quente com origem no Saara. O Ostro vento fraco vindo do sul. O Áfrico ou Libeccio (da Líbia), de sudoeste, húmido e tempestuoso. O Poente, de oeste, um vento de verão, morno e voluptuoso.

O Mistral de noroeste, frio, seco e muito violento, sopra do vale do Ródano no fim do inverno.

Enquanto o velho pescador me explicava tudo isto com a ajuda de alguns traços precisos desenhados na toalha de papel, fui pensando que tudo se ajustava. Os personagens de Durrell seriam como os ventos. Justine era o Sirocco, quente, misteriosa, sensual, imperativa e dolente. Nessim era o Ostro, vindo do Sul frágil, elegante, gracioso, sempre com uma adaga escondida nas dobras da roupa. Clea era o Poente, vinda da Europa. Discreta, enigmática, franzina. Balthazar, médico, o Tramontano severo. E Mountolive seria o Mistral, que vive no sonho de um romance nunca acontecido, uma paixão não concretizada, até ao dia, muitos anos depois, em que reencontra a mulher que lhe insuflou ânimo na vida, transformada numa hárpia egípcia que o horroriza e da qual foge nauseado.

O pescador ,quando paguei as bebidas e a aula de geografia, perguntou-me quando eu ia embora. Expliquei que partia dali a dois dias. Ele olhou para o mar lá ao fundo e disse-me:

_Amanhã vai haver tempestade, Estamos a 28 de setembro, Depois os ventos mudam e aqui começa o inverno. E o Tramontano enlouquece as pessoas. É bom que parta.

Perguntei-lhe onde tinha nascido.

_Num barco de refugiados. Íamos aportar à Palestina. Tropas inglesas desviaram o barco para Chipre onde ficamos retidos.

_ É judeu? Perguntei eu.

Ele sorriu e disse:

_Sou levantino. O meu nome é Miguel.

Gostaria com tudo isto de fazer crescer a curiosidade dos que não conhecem Lawrence Durrell.

Pode ser que um dia nos encontremos em Alexandria.


Por opção do autor, este artigo respeita o AO90


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