“Agora já ninguém duvida do imperativo moral e patriótico do Serviço Nacional de Saúde. Os seus detractores limitam-se a tentar esvaziá-lo do seu conteúdo progressista”.
António Arnaut[1]
A pronúncia sobre os projectos de Lei de Bases da Saúde representa o regresso do debate público e democrático sobre as matérias referentes à política de saúde. Como afirmou o Dr. Mário Jorge Neves, num artigo que escreveu recentemente, todos os democratas estão convocados.
Após décadas de transformações sociais e de alterações estruturais nos sectores estratégicos do Estado, designadamente no Serviço Nacional de Saúde (SNS), o debate é, finalmente, trazido para a luz do dia. Em contraste com a silenciosa imposição parlamentar da Lei de 1990 ainda em vigor, o debate sobre a nova Lei de Bases da Saúde está saudavelmente na rua e é necessário que assim continue.
Actualmente todos estamos confrontados com a necessidade e a responsabilidade de decidir sobre como queremos ver cumprido e concretizado o nosso direito constitucional à protecção da saúde. Esta é uma opção de fundo que tem implicações vastas, nomeadamente quanto à forma de estruturação do Estado de direito democrático, inextricavelmente associado à qualidade do modelo social consagrado pelo povo Português em 25 de Abril e, por extensão, aos seus modos organizacionais.
Após a revolução o Estado foi chamado a intervir ativamente na saúde das populações. Para responder a um sistema assistencial-caritativo insipiente, coexistente com a denominada “clínica livre”, desorganizado e gerador de profundas desigualdades na proteção da saúde, os portugueses escolheram e adotaram um modelo de serviço público, no qual o Estado se assumiu como produtor de prestações públicas de saúde universais, gerais e gratuitas – o SNS.
O actual debate sobre a Lei de Bases da Saúde traduz as tensões geradas aquando da alegada “crise” do Estado Providência e o ascenso do neoliberalismo. São hoje salientes as transformações políticas, económicas e sociais provocadas pelo denominado “mercado globalizado” e pelo subsequente recuo da autonomia política e económica dos Estados – o “colete de forças dourado” (como denominado por Friedman). Quando Margaret Thatcher declarou que “a economia é o método, o objectivo é mudar o coração e a alma” do país[2], estávamos longe de antever a virulência da afirmação e as alterações de configuração ao denominado “Estado Social” que estas viriam a significar.
Importa reconhecer que na essência do debate sobre a Lei de Bases da Saúde está firmada uma questão fundamental que sobreleva para a própria definição (redefinição?) do modelo social adotado em Portugal:
- Deve o Estado assegurar a produção de prestações de saúde, através de serviços públicos próprios (tendencialmente Estado Produtor)?
Ou, pelo contrário, deve o Estado transformar-se em mero regulador ou financiador/pagador, com prestações de saúde AO público, produzidas pelo sector privado (tendencialmente Estado Regulador/ Garantia)?
Na prática, parecem ser estas as duas diferentes visões que enformam as propostas de Lei de Bases da Saúde que estão em discussão na Assembleia da República, as mesmas duas visões que justificam a convergência entre as esquerdas, em oposição às cópias serigrafadas apresentadas pela área da direita.
De um lado encontram-se os defensores do SNS, assumindo a primazia da produção pública para concretizar o direito à protecção da saúde e, do outro lado, aqueles que pretendem uma (ainda) maior participação do sector privado no denominado “sistema de saúde”, quer através da produção, quer da gestão, animados pela óptica do “consumo” de cuidados comprados, quer pelas pessoas individualmente, quer pelo Estado, ao abrigo do conceito económico de “provisão pública”.
À área da direita interessa um Estado vazio de autonomia para o exercício das suas funções sociais. Pretendem um Estado garantidor do sector privado “a fim de voltarem ao velho sistema de fazer das doenças do povo a fortuna de meia dúzia de privilegiados.”[3]
O SNS é, no presente, um dos poucos pilares que restam do “Estado Social” que durante décadas foi a bandeira justificativa da Social Democracia. Hesitar na defesa de um serviço de cuidados de saúde de qualidade e para todos, necessariamente assegurado pelo sector público, é abrir mão de um dos poucos referenciais ainda justificativos desse modelo socio-económico-político que as forças económicas neoliberais querem destruir e as forças sociais neo-fascistas pretendem cavalgar.
Começa a tornar-se visível que, subterraneamente ao debate sobre a nova Lei de Bases da Saúde, tentam impor-se correntes ideológicas contrárias à organização económico-social adotada aquando do amplo consenso nacional que esteve na génese da democracia Portuguesa. A maioria social inequívoca que, de facto, afirmou e definiu o Regime atual.
- O Regime que rejeitou a “evolução na continuidade”;
- O Regime que efectivou os direitos, liberdades e garantias individuais a par com os direitos colectivos e sociais;
- O Regime que estabeleceu os serviços públicos de protecção social: a segurança social, a escola pública e o SNS.
O Presidente da República pediu uma “lei de regime”. Essa lei é necessariamente aquela que defenderá e promoverá o SNS de acordo com as suas características identitárias. O SNS exclusivamente público, financiado pelo Orçamento Geral do Estado, com profissionais dedicados devidamente enquadrados em carreiras, com infraestruturas próprias, que assume a coesão organizacional e a coerência territorial, de acesso universal, geral e gratuito.
O Presidente da República enganou-se quando afirmou que vetaria uma futura Lei de Bases da Saúde que fosse apenas o “triunfo de uma conjuntura”. Enganou-se pois a soberania é popular e o povo Português não mudou, nem de coração, nem de alma.
À sociedade portuguesa não serve um SNS abastardado.
É por isso que a nova Lei de Bases reflectirá e promoverá (ou não) a Saúde do Regime.
E este debate que é hoje indispensável havemos todos de querer continuá-lo pois como disse Arnaut em 1979:
(…) O debate neste Plenário está a terminar. Mas não se pense que a discussão ficará encerrada ou se esgotará com a aprovação e publicação da lei. Continuaremos a discutir o Serviço Nacional de Saúde, porque discuti-lo é a melhor forma de o assumir, de o defender, de o aperfeiçoar. Este é mais um passo na arrancada irreversível, mas não é ainda a meta. Aprovada a lei, é preciso regulamentá-la e aplicá-la. Transformar a esperança num fruto fraternalmente colectivo. Sabemos que os inimigos do Serviço Nacional de Saúde não vão desarmar e continuarão a levantar-lhe muitas dificuldades e emboscadas. As dificuldades que os privilegiados sempre levantam ao progresso social à liberdade (…)”[1].
[1] Diário da Assembleia da República (1979), I Série, N.60, pág 2134.
[2] Interview for Sunday Times “Mrs Thatcher: the first two years”, 1981.
[3] Diário da Assembleia da República (1979), I Série, N.60, pág 2117.