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Segunda-feira, Novembro 4, 2024

Lei de Bases da Saúde: A proposta do Governo

Mário Jorge Neves
Mário Jorge Neves
Médico e membro do Observatório de Saúde Antonio Arnaut.

Para iniciar a abordagem desta nova proposta de Lei, importa lembrar factos objectivos em torno desta importante e delicada matéria para a vida de todos nós.

Mário Jorge Neves, Médico e Presidente do Sindicato dos Médicos da Zona Sul, e ex-Presidente da FNAM

Em 28/6/1979, a Assembleia da República aprovou o Projecto de Lei nº157/l sobre “as Bases do SNS” subscrito por António Arnaut, Mário Soares e Salgado Zenha.

Votaram a favor os deputados do PS, PCP, UDP e o deputado independente Brás Pinto e votaram contra os deputados do PSD, do CDS e os deputados independentes social-democratas.

A aprovação deste projecto veio dar origem à Lei nº 56/79 publicada em 15 de Setembro de 1979.

Ainda o SNS dava os seus primeiros passos na estruturação e operacionalização dos serviços e logo em 1982 um governo presidido por Pinto de Balsemão desencadeou a primeira tentativa para a sua destruição, através do DL. Nº 254/82.

Com o pretexto de transformar as administrações distritais de saúde em administrações regionais de saúde, esse decreto-lei revogou 46 artigos da Lei de Bases do SNS.

Em 1984, o Tribunal Constitucional, através do Acórdão nº 39/84, declarou inconstitucional o DL. Nº 254/82.

Em 1990, o governo presidido por Cavaco Silva elaborou e publicou a Lei nº 48/90 (de 24 Agosto).

Nessa lei eram estabelecidas diversas disposições que importa lembrar:

É apoiado o desenvolvimento do sector privado da saúde e, em particular,as iniciativas das instituições particulares de solidariedade social, em concorrência com o sector público.”

Nos termos a estabelecer em lei, pode ser autorizada a entrega, através de contratos de gestão, de hospitais ou centros de saúde do Serviço Nacional de Saúde a outras entidades ou, em regime de convenção, a grupos de médicos.”

O Estado apoia o desenvolvimento do sector privado de prestação de cuidados de saúde, em função das vantagens sociais decorrentes das iniciativas em causa e em concorrência com o sector público.”

O apoio pode traduzir-se, nomeadamente, na facilitação da mobilidade do pessoal do Serviço Nacional de Saúde que deseje trabalhar no sector privado, na criação de incentivos à criação de unidades privadas e na reserva de quotas de leitos de internamento em cada região de saúde.”

A lei fixa incentivos ao estabelecimento de seguros de saúde.”

A leitura destas disposições mostra à evidência que o seu objectivo era definhar e destruir o SNS.

Como é possível admitir que o dinheiro dos contribuintes, do pagamento dos nossos impostos, seja utilizado para apoiar o desenvolvimento do sector privado da saúde, ainda para mais em concorrência com o sector público, bem como a atribuição de incentivos para os seguros de saúde?

Então, onde estão as tão apregoadas leis miraculosas do mercado e da livre iniciativa?

Utilizou-se, ao longo dos anos, dinheiro dos contribuintes para grupos económicos, que depois até vão pagar os seus impostos comerciais no estrangeiro.

No nosso país, nunca se verificou qualquer limitação ou obstaculização à criação de unidades privadas de saúde. Uma vez constituídas, devem sujeitar-se às leis do mercado e da concorrência e não virem exigir o seu financiamento com dinheiros públicos, financiamento esse que depois falta nos serviços públicos de saúde e na sua capacidade de resposta.

Isto já não constitui matéria de discussão política, mas uma questão de decência republicana!

Mas apesar de todas as malfeitorias que tem sofrido e da continuada parasitação dos seus dinheiros, o SNS é o único serviço público que coloca o nosso país nos primeiros lugares mundiais de desempenho. Em poucos anos, o SNS mudou completamente o panorama assistencial e sanitário do nosso país.

A título de exemplo, a taxa de mortalidade infantil, que é o mais importante indicador de saúde, era em 1970 de 58,6 por mil e no ano passado foi de 2,7 por mil. À nossa frente estão a Suécia e a Eslovénia com 2,5 por mil e a Finlândia com 2,3 por mil. No relatório mundial da OMS (Organização Mundial de Saúde) publicado em 2001, o nosso país encontrava-se em 12º lugar com os melhores indicadores de desempenho.

Diversos relatórios da OCDE têm sublinhado as realizações do nosso SNS e a substancial melhoria dos indicadores de saúde e em 6 de Junho deste ano um jornal no nosso país publicou uma entrevista ao director-geral da OMS em que este afirmou “ Portugal tem um dos poucos bons sistemas de saúde do mundo”.

Nos últimos tempos temos assistido a afirmações públicas que apelam a “consensos” e a uma legislação “flexível” bem como ao aparecimento de novos slogans ideológicos de que não importa se a gestão é pública ou privada.

Os dois tipos de gestão têm objectivos distintos e não podem ser misturados:

A gestão pública tem como foco fundamental o bem comum da sociedade e a sua evolução civilizacional, a gestão privada está vocacionada para o lucro, o consumo e o negócio. A gestão pública existe para atingir uma missão que é considerada socialmente valiosa, a gestão privada existe para maximizar o património dos accionistas, tendo como critério de bom desempenho o resultado financeiro.

Neste contexto, a Proposta de Lei de Bases da Saúde do actual Governo vem introduzir importantes alterações em relação à citada lei de 1990.

Da sua leitura, considero importante referir os seguintes aspectos positivos:

1. Desaparece o princípio da concorrência entre o sector público e o privado e da criação de incentivos à constituição de unidades privadas

2. Assume que a gestão dos estabelecimentos prestadores de cuidados de saúde é pública, podendo ser supletiva e temporariamente assegurada por contrato com entidades privadas ou do sector social.

Esta formulação limita consideravelmente a gestão dos serviços públicos por entidades privadas, uma vez que, a verificar-se, ela é supletiva.

3. Coloca a promoção da saúde e a prevenção da doença, como devendo ser consideradas na definição e execução de outras políticas públicas.

São estas medidas que podem tornar as pessoas mais saudáveis, com menor carga de doença, com menos multipatologias e menor recurso aos serviços.

4. Define a melhoria do estado de saúde da população, através de uma abordagem de saúde pública, da monitorização e vigilância epidemiológica e da implementação de planos de saúde nacionais, regionais e locais.

5. Estabelece a participação das pessoas, das comunidades e dos órgãos municipais na definição, no acompanhamento e na avaliação das políticas de saúde.

É na participação organizada da população que se procede ao ajustamento da política de saúde e à regulação externa dos serviços de saúde.

6. Considera que a política de saúde deve incentivar a adopção de medidas promotoras da responsabilidade social, individual e colectiva, nomeadamente apoiando voluntários, cuidadores informais e dadores benévolos.

7. Que o Estado promove a participação das pessoas na definição, acompanhamento e avaliação da política de saúde, promovendo a literacia para a saúde.

8. Que a intervenção das autarquias locais se manifesta, designadamente, no apoio aos sistemas locais de saúde, com especial incidência nos cuidados de proximidade e nos cuidados na comunidade, bem como no planeamento da rede de estabelecimentos prestadores e na participação nos órgãos de acompanhamento e de avaliação do sistema de saúde.

Os sistemas locais de saúde são as infraestruturas que estão em melhores condições para concretizarem a participação das pessoas, a promoção da saúde e a prevenção da doença, o desenvolvimento de planos locais de saúde, a cooperação dos actores locais e a melhor articulação entre os serviços prestadores de cuidados de saúde.

9. Que os sectores público, privado e social devem actuar de acordo com o princípio da cooperação, pautando-se por regras de transparência, prevenindo a indução artificial da procura, a selecção adversa de casuística e os conflitos de interesse nos profissionais.

A supressão do conceito de complementaridade entre os três sectores concretiza a autonomia funcional, organizacional e financeira entre eles.

10. Que o SNS dispõe de estatuto próprio, tem organização regionalizada e uma gestão descentralizada e participada.

11. Estabelece o princípio da Equidade, promovendo a correcção dos efeitos das desigualdades no acesso aos cuidados, dando particular atenção às necessidades dos grupos vulneráveis.

É uma medida particularmente importante para a diminuição das desigualdades em saúde.

12. Bem como o princípio da Proximidade, garantindo que todo o país dispõe de uma cobertura racional e eficiente de recursos em saúde.

13. Que a organização interna dos estabelecimentos e serviços do SNS deve basear-se em modelos que privilegiam a autonomia de gestão, os níveis intermédios de responsabilidade e o trabalho de equipa.

14. Que no seu funcionamento, o SNS se sustenta numa força de trabalho planeada e organizada de modo a satisfazer as necessidades assistenciais da população, em termos de disponibilidade, acessibilidade, aceitabilidade e qualidade, numa evolução progressiva para a criação de mecanismos de dedicação plena ao exercício de funções públicas, estruturadas em carreiras.

A consagração do princípio da organização profissional em carreiras é de primordial importância no SNS. As carreiras profissionais hierarquizadas e assentes em concursos públicos de progressão e diferenciação técnico-científica têm sido um factor decisivo de garantia da qualidade do exercício profissional.

A qualidade formativa dos nossos profissionais de saúde é reconhecida internacionalmente, como é caso concreto da escola médica portuguesa que é considerada uma das melhores a nível mundial.

15. Que no seu funcionamento, o SNS se articula, em especial, com os demais sectores do Estado, com os órgãos municipais e das comunidades intermunicipais e com todas as entidades que operem na área da saúde.

16. A criação de bases específicas para a Saúde Mental e para a Saúde Ocupacional.

Por outro lado, existem matérias que impõe, na minha opinião, uma posterior reflexão e decisão:

A) A descentralização de competências nos órgãos municipais assume-se como um claro propósito político para o sector da saúde.

Esta formulação exige uma abordagem futura muito cuidadosa porque pode criar grandes conflitos no sector dado não haver qualquer experiência histórica desta modalidade de funcionamento, e enveredar pelo princípio de comando/controlo por entidades estranhas sobre as instituições de saúde.

B) A proposta refere que a lei pode prever a cobrança de taxas moderadoras,tendo em vista o controlo da procura desnecessária e a orientação da procura para respostas mais adequadas às necessidades assistenciais, sem prejuízo de poder determinar a isenção de pagamento, nomeadamente em função da situação de recursos, de doença ou de especial vulnerabilidade.

Não deveria ser efectuada a referência ao ”controlo da procura desnecessária”, uma vez que, em cada momento, quem decide a necessidade são sempre as pessoas.

C) É afirmado que os seguros de saúde são de adesão voluntária e de cobertura complementar ao SNS.

Esta formulação reconhece que a cobertura do SNS não é universal e geral, tornando-se contraditória com a definição constitucional do SNS.

D) Deveria ser criada uma base específica sobre Saúde e Envelhecimento.

E) A política de delimitação dos sectores prestadores de cuidados de saúde deve ser objecto de uma abordagem mais concisa, partindo desde logo do pressuposto de que tal delimitação não se limita a modalidades de regimes de trabalho dos profissionais de saúde, mas começa na utilização dos dinheiros públicos.

F) Estando presente na proposta governamental a focalização numa gestão pública mais qualificada, torna-se imperioso criar uma carta da gestão pública da saúde onde se definam os seus parâmetros gestionários específicos e os patamares de responsabilização dos membros das administrações aos vários níveis.

O SNS constitui um pilar fundamental do Estado Social, um factor de equidade incontornável para um desenvolvimento sustentável e um instrumento insubstituível para garantir a coesão social.

Sendo a coesão social entendida como a capacidade de uma sociedade para gerir a mudança e o conflito mediante uma estrutura democrática de distribuição dos seus recursos sócio-económicos, sócio-políticos e sócio-culturais, esta Proposta de Lei de Bases da Saúde assume uma importância muito acrescida porque extravasa para os vários domínios da sociedade.

Esta Proposta surge num momento particularmente sensível e não pode ser, de modo algum, desperdiçada. Nesse sentido, na posterior regulamentação importa desenvolver todos os esforços para que a defesa do SNS seja revitalizada com este novo enquadramento legal.

O poeta António Gedeão escreveu um dia num poema que:

Eles não sabem, nem sonham,
que o sonho comanda a vida.
Que sempre que o homem sonha
o mundo pula e avança
como bola colorida
entre as mãos de uma criança.

O SNS tem sido o sonho que tem garantido a saúde e a vida a muitos dos nossos cidadãos sem discriminações de raças, de credos ou de condições sócio-económicas, permitindo que continuem a dar o seu contributo cívico para que o mundo pule e avance.

Dentro da melhor tradição humanista e solidária do nosso povo, importa preservar o direito à Saúde e não permitir que ele se transforme num privilégio de alguns ao dispor de accionistas.

Ao Dr António Arnaut, onde quer que ele esteja, um enorme abraço fraterno, na certeza de que esta obra humanista e de grande impacto no avanço civilizacional vai ter continuadores livres e honrados.


por Mário Jorge Neves, Médico e Presidente do Sindicato dos Médicos da Zona Sul; ex-Presidente da FNAM


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