Diário
Director

Independente
João de Sousa

Domingo, Novembro 3, 2024

Lei de Bases da Saúde: alçapões e lucernas

Teresa Gago
Teresa Gago
Médica dentista; desempenhou diversos cargos autárquicos, incluindo o de vereação em Cascais entre 2013-2017. Dirigente Associativa do Movimento Não Apaguem a Memória e membro da Plataforma Cascais-movimento cívico. Militante do PS.

Intervenção da Dra. Teresa Gago, na Fundação Calouste Gulbenkian, em 21 de Janeiro de 2019.

Boa tarde,

Agradeço à Associação de Médicos Pelo Direito à Saúde, através do Dr. Jaime Mendes, o convite para aqui estar.

É com muito gosto que participo nesta sessão sobre o futuro do SNS.

Futuro este que se ambiciona venha a ser de aprofundamento democrático, de crescimento e de reforço identitário do SNS como sector estratégico do Estado.

Embora se reconheça que um documento legislativo não poderá por si só resolver todos os problemas do sector da saúde, é inequívoco que a nova Lei de Bases será determinante para o futuro do SNS e, assim, para a estrutura e a capacidade do SNS do futuro.

Em termos simples trata-se, de facto, de decidirmos como queremos assegurar o nosso direito constitucional à protecção da saúde. Queremos que seja, em primeira linha, o Estado a assumir as suas responsabilidades mediante prestações próprias, democráticas, universais, gerais e (tendencialmente) gratuitas, através do SNS?  Ou, pelo contrário, aceitamos que grandes grupos privados financiados pelo erário público, engulam os pequenos/médios prestadores e se transformem em suseranos do SNS, quer através dos hospitais privados, quer através dos seguros de saúde?

É hoje iniludível que a Lei de Bases da Saúde de 1990 conduziu o SNS por alçapões de definhamento, tal como foi descrito por António Arnaut e mais recentemente por António Costa. A realidade está à vista de todos e pode ser resumida em 3D’s cinzentos: DIFICULDADE, DESIGUALDADE E DESÂNIMO.

Dificuldade de financiamento e dificuldade de organização;

Desigualdade de acesso dos doentes e desigualdade nos custos das prestações;

Desânimo dos profissionais e desânimo dos utentes.

É fundamental, por isso, que a nova Lei de Bases da Saúde possa, não somente, colmatar os alçapões que a actual Lei possibilitou, mas sobretudo que possa, de facto, inverter a trajectória descendente para a qual o SNS foi conduzido.

Para cumprir este propósito é importante que todos contribuamos para focar o debate  no essencial, evitando que este seja desviado para questões acessórias sobre métrica ou protagonismos.  A qualidade da nova Lei de Bases da Saúde não depende da quantidade de bases ou da exaustividade dos temas abordados, depende, sim, da capacidade que terá para “salvar o SNS” e para promover o seu desenvolvimento sustentado em articulação com outros parceiros sociais e da saúde.

É este o ponto de partida quando vos falo sobre os alçapões e as luzes que constam das diferentes propostas de Lei de Bases e que poderão vir a ensombrar ou a iluminar o futuro do SNS, tal como ele é necessário e socialmente insubstituível.   

Desde logo, existem dois alçapões que as propostas do PSD e do CDS não apenas mantêm como pretendem aprofundar:

O primeiro, quanto à relação público e privado. As propostas do PSD e do CDS emanam de um documento comum, e caracterizam-se, ambas, pelo reforço da drenagem dos dinheiros públicos para o sector privado.

Embora as propostas do PSD e do CDS refiram o termo “concorrência”, e com assinte proponham, como em 1990, que: “O Governo pode estabelecer incentivos à criação de unidades privadas” (Base XLIV do PSD) e “A lei pode fixar incentivos ao estabelecimento de seguros privados de saúde” (Base XLV do PSD) e que “devendo o Estado adquirir serviços de saúde, em igualdade de circunstâncias, aos prestadores públicos, privados e sociais.” (Base XXVII do CDS), a verdadeira armadilha encontra-se na definição de “prestações públicas de saúde” (PSD: Base XXXVII, nº1 e CDS: Base XXV, n.º1) cuja redacção, em obediência ao documento progenitor, é igual nos projectos do PSD e do CDS.

De facto, através de uma subtil redacção armadilhada, o que as forças conservadoras vêm propor é que todas as prestações AO público, desde que financiadas pelo Estado, sejam consideradas como prestação pública, de forma indistinta, mesmo quando prestadas por terceiros.

Ora, é fácil entender que isto significa promover a confusão entre o que é a prestação pública e o que é aprestação privada. Como se por ambas se dirigirem AO público, tivessem os mesmos objectivos, a mesma justificação ou a mesma responsabilidade social e colectiva.

Nesta questão nunca é demais lembrar que o sector privado, ao visar prioritariamente o lucro, tem como prática conhecida interromper os cuidados de saúde sempre que o financiamento do doente se esgota, enquanto o sector público, que tem como prioridade o bem comum, assegura os cuidados de saúde sem olhar à condição económico-financeira dos doentes, sem discriminação.

Nesta matéria é também pertinente salientar que o argumento demagógico de “o que é preciso é cuidar da saúde, independentemente da natureza do prestador não importando se é público ou privado” é falacioso. É falacioso até porque, como todos sabemos, a maior parte dos casos mais complexos e graves são enviados e tratados em unidades do SNS. A natureza do prestador é, efectivamente, importante. É-o por causa dos recursos que é capaz de mobilizar e porque o SNS não desiste, interrompe ou nega os tratamentos pela razão do dinheiro.

As propostas do PSD e do CDS, assim como o documento a que aludem nos seus preâmbulos, o que pretendem é transformar o SNS numa caricatura. Ao promoverem a metamorfose da prestação pública, característica do SNS, transformando-a num híbrido público-privado com limites difusos, é a própria natureza do SNS que é desvirtuada. É desvirtuada para que, a pretexto da designação de “SNS”, o erário público continue a financiar os consórcios privados da prestação de saúde.

O segundo alçapão relaciona-se com o primeiro, mas refere-se à organização e à gestão do SNS.

Pese embora o número prolífico de bases que se encontram nas propostas do PSD e do CDS em nenhuma delas se vislumbra qual o travejamento organizacional do SNS ou como este se operacionaliza. Pelo contrário.

Ambas as propostas, à semelhança dos eu documento matriz e da Lei de 1990, contemplam uma organização dita flexível e adaptável, sendo que o mesmo será dizer invertebrada e informe, para que melhor possa adequar-se à “mão invisível” dos grandes grupos económico-financeiros da saúde.

Esta é uma matéria em que não deve haver lugar a ingenuidades.

Ainda recentemente foi dito por um dirigente do PSD que a nova Lei de Bases deve permitir a adequação da organização e da gestão do SNS a diferentes visões de Governo.

Ou seja, mais PPP, menos PPP, mais contratados a prazo, menos contratados a prazo, mais investimento nos cuidados de saúde primários, menos investimento nos cuidados de saúde primários, ….

….em suma, esta alegada flexibilidade significa deixar em aberto a maior ou menor permissividade à colonização do sector público pelo privado  e ao aprofundamento das dependências funcionais em detrimento da verdadeira autonomia do SNS.

Estas formas pretensamente flexíveis e adaptáveis, baseadas em profissionais que supostamente estarão no SNS “independentemente da relação jurídica de emprego” (frase que também consta em ambos os documentos), significam objectivamente a negação de uma estratégia nacional para o SNS.

Significam, no concreto, a aceitação da instabilidade organizacional e laboral que tanto mal tem feito ao SNS e, por consequência, ao exercício do direito à igualdade no acesso ao direito à protecção da saúde.

A proposta do governo, assumida pelo PS, pretende pôr travão a estes procedimentos e assume com clareza um sentido contrário ao da Lei de 1990 ao identificar grande parte dos alçapões por onde o SNS tem tropeçado.

A proposta do governo afirma que o SNS é definido como “um conjunto organizado e articulado de estabelecimentos e serviços públicos prestadores de cuidados de saúde”, pelo que relembra a sua natureza identitária e recusa a descaracterização venal que é proposta pelo PSD-CDS.

Afirma também que “para efectivar o direito à saúde, o Estado actua através de serviços próprios e contrata, apenas quando necessário, com entidades do sector privado e social a prestação de cuidados”, rejeitando, desta forma, os mecanismos desnecessários de drenagem do dinheiro público para o sector privado.

Adicionalmente, ao propor a boa gestão dos recursos públicos, requer modelos de organização interna que privilegiam a autonomia de gestão e níveis intermédios de responsabilidade, o que, em conjunto com a prossecução de mecanismos para a dedicação plena é assumir, com clareza, um compromisso para com a valorização das carreiras dos profissionais de saúde e com procedimentos que contribuirão para a estabilidade orgânica do SNS.

Porém, se através da exposição de motivos da proposta do governo nos são apontados princípios que indicam vontade de travar alguns dos ímpetos mais imediatistas protagonizados pelos grandes grupos económicos, seria prudente que a actual maioria parlamentar os pudesse consolidar no articulado da Lei. 

É possível e certamente desejável que a nova Lei de Bases da Saúde contribua para maior perenidade e estabilidade, quer legislativa, quer organizacional para que o SNS se possa desenvolver após 28 anos de mudanças, mutilações,experiências, adaptações e remendos.

Se o Parlamento tiver a sabedoria de articular inteligentemente a proposta governamental e do PS, com a proposta de Arnaut-Semedo (apresentada pelo Bloco de Esquerda) e com a proposta do Partido Comunista Português, será possível aprovar uma nova Lei de Bases que declaradamente assegure o SNS para as próximas gerações e que, deste modo, salvaguarde o direito à protecção da saúde nos termos preconizados pela social-democracia ou pelo socialismo democrático, como preferíramos.

Permitam-me que, a título de exemplo, articule brevemente alguns pontos onde esse complemento seria iluminador, porque não só protegeria o SNS e o seu Estatuto de inconstâncias ideológicas, como constituiria uma estratégia de futuro para a estabilidade, operacionalidade e o desenvolvimento dos serviços públicos de saúde.

Para clarificar a relação entre público e privado é primordial manter a distinção entre o que são as prestações públicas e as prestações privadas, assumindo, sem ambiguidades, que compete ao Estado assegurar o direito à protecção da saúde através de serviços próprios de prestação, dotados de um corpo profissional específico, com recursos infraestruturais e tecnológicos públicos, suportados por um financiamento adequado para assegurar a resposta às necessidade de saúde da população. O mesmo será dizer, através do SNS (e não de um híbrido caricatural)

Decorre disto a importância de que a administração e a gestão das entidades que constituem o SNS seja exclusivamente pública e regida por critérios de democraticidade interna e externa, quer através de procedimentos electivos, quer através de concurso público, de forma a assegurar a participação dos utentes e dos profissionais de saúde, de maneira transparente e escrutinável.

Esta forma de gestão pública permite uma organização do SNS regionalizada e descentralizada, alicerçada em sistemas locais de saúde de dimensão sub-regional que garantam a acessibilidade, integração e a continuidade entre todos os níveis de cuidados, de acordo com um planeamento nacional que assegura a coesão territorial e a racionalidade de utilização dos recursos públicos, prevendo-se a possibilidade de colaboração temporária e supletiva de prestadores privados quando e enquanto, demonstradamente, o sector público não dispuser dos recursos próprios suficientes.

Tão importante como os aspectos do Estatuto organizacional do SNS é o reconhecimento concreto da importância social dos profissionais de saúde, assumindo-se a valorização e a dignificação das carreiras de todos estes profissionais através da vinculação pública, criando-se mecanismos para o trabalho a tempo completo, incluindo a progressão nas carreiras e a formação, terminando-se progressivamente com a precariedade laboral e contribuindo, assim, para a estabilidade e a consolidação do corpo de profissionais de saúde dedicados ao SNS.

Contrariamente ao que alguns pretendem fazer crer isto não é estatismo. É, na realidade, a mera prossecução do pacto social que nasceu de um amplo consenso democrático nacional. É, isso sim, resistir ao neoliberalismo que tanto prejudica as pessoas e cerceia a liberdade dos pequenos e médios prestadores, nos quais se incluem as IPSS.

A todos vós me dirijo:

Não aceitemos que nos iludam, os projectos do PSD e do CDS, assim como a pré-proposta que os inspira, desvirtuam a natureza identitária do SNS e, assim, a própria concepção de Estado Social que marcou a génese da democracia Portuguesa. Basta analisar a evolução dos documentos, dos acontecimentos e das declarações proferidas.

É hoje evidente que existem sectores económicos e políticos empenhados na descaracterização do SNS e que estes pretendem robustecer-se criando dificuldades ao sector público, onerando mais as pessoas e as famílias. 

As propostas: a do Governo, assumida pelo PS; a do BE e a do PCP prosseguem pela tradição democrática Portuguesa e permitirão desenvolver um SNS, moderno, participado e progressista através do qual a Saúde é afirmada enquanto sector estratégico do Estado e fonte de democracia.

Para assegurar um SNS universal, geral e gratuito não é necessário mudar a Constituição. É apenas necessário uma nova Lei de Bases da Saúde que assuma o SNS como causa nacional.

Com esta maioria parlamentar, representativa de uma ampla maioria social intrinsecamente democrática, é possível!

Saibamos todos, aos 3Ds negativos que inicialmente referi como estando actualmente associados ao ‘serviço de saúde’, responder com os 3Ds luminosos que a nova Lei de Bases da Saúde lhe poderá proporcionar: Democracia, Desenvolvimento e Determinação.

Permitam-me que termine recordando palavras de Miller Guerra:

As hesitações, as transigências benevolentes, os compromissos tãodo nosso feitio, irão corromper todas as iniciativas. Uma experiência falhadanum ponto essencial, prejudica irremediavelmente o conjunto e o fim a que seprocura chegar”.

Obrigada pela V/ atenção.


Receba a nossa newsletter

Contorne o cinzentismo dominante  subscrevendo a Newsletter do Jornal Tornado. Oferecemos-lhe ângulos de visão e análise que não encontrará disponíveis na imprensa mainstream.

Receba a nossa newsletter

Contorne o cinzentismo dominante subscrevendo a nossa Newsletter. Oferecemos-lhe ângulos de visão e análise que não encontrará disponíveis na imprensa mainstream.

- Publicidade -

Outros artigos

- Publicidade -

Últimas notícias

Mais lidos

- Publicidade -