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Sábado, Dezembro 21, 2024

Lei de Bases da Saúde: As acácias e o revisionismo sobre Arnaut

Teresa Gago
Teresa Gago
Médica dentista; desempenhou diversos cargos autárquicos, incluindo o de vereação em Cascais entre 2013-2017. Dirigente Associativa do Movimento Não Apaguem a Memória e membro da Plataforma Cascais-movimento cívico. Militante do PS.

A expectativa criada em torno de uma nova Lei de Bases da Saúde é grande. É o Serviço Nacional de Saúde que está em causa. Na essência do debate encontra-se um dos pilares fundamentais da nossa democracia. Não é coisa pouca.

Maria do Rosário Gama ouviu o aviso de António Arnaut: os opositores do SNS são os grandes grupos económico-financeiros que operam no ‘mercado’ e que lutam, desde sempre, clara ou disfarçadamente, pelo seu desmantelamento, descaracterização, ou pela redução a um serviço residual para os mais pobres…”; e continuou: “…esses grupos continuam na expectativa de que chegará a sua hora...”.

  1. As Parcerias Público-Privadas (PPP) e os três argumentos do vale tudo

As PPP foram trazidas para o centro do debate porque são um importante factor de desmembramento do SNS. Importa esclarecer a que se referem visto que a insistência na confusão de conceitos parece continuar a ser o primeiro engodo para as justificar.

As PPP são a gestão privada de unidades públicas de saúde. São a possibilidade de gestão privada generalizada dentro do SNS (hospitais e centros de saúde), com a apropriação de lucros financeiros pelos grandes grupos económicos. Representam a promiscuidade instituída no âmago do SNS.

Mas, as PPP são completamente diferentes da contratação ou da convenção de serviços de saúde com o setor privado e social quando o SNS tem dificuldade em dar resposta atempada. Nenhum partido propõe a extinção dos serviços privados contratados. Compreender a diferença é fácil!

Registe-se como a direita se mostra chocada com o que ocorre com a gestão privada da transportadora pública TAP retratando, de forma precisa, o que acontece quando não há delimitação clara entre sectores:

Estamos perante um caso de nacionalização de prejuízos e privatização de lucros. Neste momento, a TAP é privada nos seus actos de gestão, mas é pública se precisar de dinheiro. É o melhor dos mundos para a irresponsabilidade financeira privada.”

Pois é! Na área da saúde é análogo. Mas para a direita há dois pesos e duas medidas, ou, na pior das hipóteses, a expectativa de formas mais “discretas” de depauperar o erário público que não através da distribuição de prémios.

O segundo engodo para o ardil das PPP é confundir entre áreas de actividade, designadamente entre o que é a empreitada de obra e a gestão clínica. Para justificar o “encavalitar” dos privados sobre o SNS, instalou-se a campanha de que as PPP são necessárias para possibilitar a celeridade e a diminuição dos custos na construção de novos equipamentos.

Curiosamente nos denominados hospitais da 2ª vaga de PPP (edificação) ainda se aguarda pela materialidade da sua concretização (Hospital de Évora desde 2010 e Hospital Oriental de Lisboa desde 2012), enquanto nos hospitais da 1ª vaga (edificação e gestão clínica) têm sido divulgados os escândalos dos hospitais de Cascais e de Vila Franca de Xira quanto à possibilidade de artimanhas para aumentar o financiamento e atingir rankings “de excelência”, em desconsideração pela saúde da população.

Na verdade, a questão genérica das PPP está de tal modo mal prevista ao nível da legislação Europeia, e os resultados têm sido tão duvidosos, que o Tribunal de Contas Europeu emitiu em 2018 um relatório intitulado “PPP na UE: insuficiências generalizadas e benefícios limitados” podendo ler-se, entre outras, as seguintes recomendações:

  1. não promover uma utilização mais intensiva e generalizada das PPP (…);
  2. atenuar o impacto financeiro dos atrasos e das renegociações nos custos das PPP suportados pelo parceiro público;
  3. fundamentar a escolha da opção PPP em análises comparativas sólidas sobre a melhor opção de contratação pública.

Com efeito o aventureirismo das PPP em Portugal, como denunciado por Durão Carvalho (num artigo que recomendo), já teve consequências nefastas, nomeadamente a dissolução da Direção-Geral das Instalações e Equipamentos da Saúde (DGIES) com consequente perda pública do conhecimento técnico adquirido e a necessária concentração de “massa crítica”. Portugal já perdeu o comparador público. Estaremos dispostos a perder ainda mais?

O terceiro engodo é a afirmação de que a gestão privada é melhor que a pública. De forma paradoxal é pela direita que o argumento é destruído através das palavras de Leal da Costa (PSD):

A gestão dos serviços públicos por privados não garante, por si só, que esses serviços sejam melhores. A grande reforma não pode ser a atribuição de serviços públicos à gestão privada”.

Os hospitais PPP podem nem ser os melhores. Seguramente não são. Um dia, se o tempo e a paciência não me faltarem, explicarei porque desconfio da sacralização dos rankings e dos ratings. No entanto, os hospitais em regime PPP foram os mais escrutinados em toda a história dos hospitais portugueses. Foram os que mais pagaram ao Estado, basta só fazer contas às multas…

Para que não subsistam enganos, falsas ilusões ou opiniões “distraídas” é fundamental que fique bem clara a posição de António Arnaut para com as PPP, assim como as suas intenções testamentais:

a grande e principal motivação política desta proposta é fazer regressar o SNS aos seus valores e princípios fundadores e constitucionais, a saber: direito à saúde para todos e assegurado pelo Estado através do Serviço Nacional de Saúde. Um SNS universal, geral e gratuito, de gestão integralmente pública (…)”.

Para quem defende o legado de Arnaut e o SNS a questão das PPP não é menor; uma mera teima ou um finca-pé. Assumir que o SNS tem gestão integralmente pública, ainda que permitindo tempestivamente o términus das PPP existentes, é um dos pontos essenciais. Este facto é iniludível e incontornável.

  1. O PS-Leaks dá vislumbres sobre o futuro

O PS-leaks, aquando da tribulação dos documentos negociais entre o Governo e o BE, revelou a existência de contradições internas no PS. O Governo, através do primeiro-ministro (que, recorde-se, também é secretário-geral do PS), caminhava no sentido de honrar a palavra dada a António Arnaut e dispunha-se a afrontar o status quo institucionalizado do “bloco central de interesses”, dando início ao percurso legislativo de inversão da Lei de 1990, como historicamente o PS (parecia?) vinha defendendo.

Porém, o Grupo Parlamentar do PS (GP-PS) deu o dito pelo não dito manifestando uma preferência pelo caminho iniciado pela direita e (assumamo-lo) prosseguido pelo PS, ainda que de forma mitigada, durante demasiado tempo.

As diferenças que existem entre o alegado documento negocial do Governo e o documento apresentado pelo Grupo Parlamentar do PS (GP-PS) estão explicitadas num artigo de João Ramos de Almeida no blogue Ladrões de Bicicletas (com documentos disponíveis), ao qual foi acrescida uma análise comparativa entre a Lei de 1979 (Lei Arnaut), a Lei de 1990 (PSD/CDS) e o documento apresentado pelo GP-PS.

Com efeito, assim como João Ramos de Almeida concluiu que:

parece que a proposta que saiu da negociação com o Governo foi bem revista por alguém que riscou tudo o que prejudicava os interesses privados”

também se pode constatar que:

se o projeto do GP-PS em nada contribui para travar a promiscuidade entre público e privado, nem para desonerar as famílias, nem para disciplinar os seguros de saúde, nem para valorizar os profissionais do SNS, o objectivo, afinal, parece ser apenas o da aniquilação das estruturas orgânicas do Ministério da Saúde. O que restará, então, do SNS? A memória?”.

Tal como António de Almeida Santos alertou em tempos “de recuo em recuo, a filosofia social que presidiu ao desenho constitucional do SNS, vem sendo progressivamente neoliberalizada… não tarda e, quando dermos por isso, do originário SNS, só restará a tabuleta” .

Neste momento histórico, com a actual maioria parlamentar é, de facto, uma oportunidade perdida se não for possível aprovar uma Lei de Bases da Saúde assumidamente progressista. Todavia essa possível aprovação terá que pressupor a clarificação do caminho pelo qual o PS pretende prosseguir. Não pode ser apenas “um salto no escuro” que permitirá quaisquer tergiversações futuras quando se legislar o Estatuto do SNS e outra legislação complementar, porventura com uma maioria parlamentar diferente.

Uma nova Lei de Bases da Saúde aprovada entre as esquerdas tem que proporcionar a estabilidade legislativa e a durabilidade temporal necessária para reverter os efeitos da Lei de 1990.  Para tanto o PS não pode hesitar na sua determinação quanto aos fundamentos e aos pilares do SNS nem, tampouco, pretender substituir-se ao PSD para acalmia de um Presidente da República excessivamente tutelar.

Considerações finais

Perdoar-me-á Ana Sá Lopes, mas dizer que a Lei de 1979, a Lei Arnaut, era mais “liberal” que a actual proposta do PS é incorrer num revisionismo inusitado. O passado ainda é demasiado recente para se poder recontar a história como bem se entende ou de forma descuidada. A saúde dos Portugueses merece mais. Precisa de mais SNS. Um SNS universal, geral, (tendencialmente) gratuito e de gestão exclusivamente pública!

Afirmo que sou socialista no partido de seu nome, por isso espero apenas, nem mais nem menos, que o partido assuma o SNS conforme o nome com que se identifica. Espero – em conjunto com a ampla maioria social que possibilitou esta maioria parlamentar e que apoiou a actual solução governativa. Ainda há tempo.


Por opção do autor, este artigo respeita o AO90


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