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Segunda-feira, Novembro 4, 2024

Lei de Bases da Saúde: O charme discreto de Belém

Teresa Gago
Teresa Gago
Médica dentista; desempenhou diversos cargos autárquicos, incluindo o de vereação em Cascais entre 2013-2017. Dirigente Associativa do Movimento Não Apaguem a Memória e membro da Plataforma Cascais-movimento cívico. Militante do PS.

filosofia neoliberal (…) visou a destruição do Estado Social e reduziu o SNS a um serviço residual para os pobres
António Arnaut [1]

O futuro do Serviço Nacional de Saúde (SNS) está em debate. As principais dificuldades estão identificadas e importa, agora, definir o que fazer perante os problemas. António Arnaut, “pai do SNS”, confiou as suas esperanças à actual maioria parlamentar e ao governo do PS: é preciso reconduzir o SNS à sua matriz constitucional e humanista. Há agora condições políticas e parlamentares para realizar essa tarefa patriótica e o governo propôs-se fazê-lo[1].

Com o propósito de contribuir para a correcção da trajectória neoliberal a que o SNS foi sujeito desde a Lei de Bases da Saúde de 1990 (imposta pelo PSD-CDS), António Arnaut e João Semedo propuseram a reversão dos mecanismos que suscitaram a hemorragia financeira do SNS. Uma das medidas é terminar com as denominadas parcerias público-privadas (PPP) no SNS: a “administração, gestão e financiamento das instituições, estabelecimentos serviços e unidades prestadoras de cuidados de saúde é exclusivamente pública, não podendo, sob qualquer forma, ser entregue a entidades privadas ou sociais, com ou sem fins lucrativos” (Base XXXIX n.º 4 da proposta Arnaut-Semedo).

(foto: Esquerda.net)

Porém, a proposta de bom senso que consiste no atribuir “ao público o que é do público[2] e ao privado o que é do privado, parece constituir-se como o verdadeiro pomo da discórdia entre o interesse público e os interesses privados.

A visão estratégica da reforma da saúde apresentada pelo PSD baseia-se na generalização das PPP, designadamente na possibilidade de entrega da administração e gestão dos serviços públicos ao sector privado. O PSD, ardilosamente, tenta fazer crer que a justificada articulação entre o SNS e as formas privadas de cuidados fundamenta a adicional entrega do SNS aos grandes grupos da medicina mercantilizada. O velho dogma ideológico do Estado como mero fiscalizador e regulador do mercado parece já não ser suficiente pretendendo, agora, a direita possibilitar a “usurpação” privada da capacidade pública que o SNS instalou ao longo de 39 anos. Com efeito, Rui Rio age ao abrigo da máxima que “a saúde é um negócio como outro qualquer” prestando-se a criar condições para a alienação do SNS tal como aconteceu com a PT, os CTT e a EDP, entre outros.

Um facto inquietante é que idêntica possibilidade se encontra claramente expressa na pré-proposta apresentada pela denominada “Comissão Belém Roseira” na versão colocada em discussão pública (terminada a 19 de Julho): “ (…) a gestão de estabelecimentos e serviços do Serviço Nacional de Saúde ou de partes funcionalmente autónomas dos mesmos, constituir objeto de concessão com entidades do setor de economia social e com entidades privadas (…)” (Base XX, n.º 9 da Comissão). Esta “porosidade” em conjunto com a redefinição de “prestação pública de saúde” onde é incluída a prestação privada desde que financiada pelo Orçamento Geral de Estado (Base XX conjugada com Base XXIV), não só não acautela uma futura Lei de Bases da Saúde quanto aos propósitos do PSD-CDS, como, de forma incauta, dá um passo naquela direcção ao fomentar a confusão entre “prestação pública” e “prestação ao público”, como se do mesmo se tratasse.

Ao longo de quase trinta anos (desde 1990) foi sendo instalado no SNS este tipo de Procedimento Pouco Perceptivel (as PPP). Todavia, actualmente, podem-se avaliar os efeitos da falta de clareza entre público e privado: anualmente, mais de 300 milhões de euros da receita dos grupos mercantilizados da medicina provêm directamente das PPP[3]. À vista de todos, tornam-se evidentes os prejuízos que as PPP têm causado no desenvolvimento do SNS enquanto instrumento público da concretização do direito à saúde e compreendem-se melhor os interesses dos que as defendem.


Audiência à Comissão de Revisão da Lei de Bases da Saúde, presidida por Maria de Belém Roseira, no Palácio de Belém

A proposta final da “Comissão Belém Roseira” terá sido entregue no Palácio de Belém merecendo elogios “pela importância da proposta como um contributo fundamental para o debate político e social[4]. No entanto, a elegância da colocação em discussão pública não foi, até hoje, acompanhada da gentileza da informação ao público sobre o resultado da participação popular ou sobre qual a versão final da proposta da dita “Comissão Belém Roseira”. Apenas se sabe que o Palácio de Belém se mostrou agradado e que, provavelmente, a proposta corresponderá aos ensejos de “dar passos maiores no sentido de um verdadeiro pacto de saúde para os portugueses[5], proferido por quem, de forma consistente, tem defendido a necessidade de um “consenso duradouro nas políticas sociais[6], mas que em tempos apelidou o consenso das esquerdas de onde o SNS nasceu de “sonho mexicano[7].

Em síntese, a proposta do PSD explicita o que a pré-proposta da “Comissão Belém Roseira” perspetiva e o Palácio de Belém deseja.

Espera-se que o PS esteja determinado no caminho que traçou quando identificou que “a falta de clarificação nas relações público-privado mantém ou agrava as ineficiências do setor público, alimentando um mercado privado florescente[8]. Espera-se também que seja capaz de honrar o legado histórico de António Arnaut enquanto defensor do SNS e não sucumba perante o charme discreto de Belém.

35 anos depois

Serviço Nacional de Saúde
a esperança em liberdade
força conjugada
do dever e da vontade
Ainda floresce
na alma levantada
este grito – SNS!
Que seja de todos, Sol e vida
estrela da igualdade
símbolo, força, sinal;
Cravo de abril plantado,
no chão de Portugal

 

[1] António Arnaut, SaúdeOnline de 21 de Maio de 2018
[2] Cipriano Justo, Público de 28 de Agosto de 2018
[3] Augusto Mateus & Associados, “Setor privado da saúde em Portugal” (versão executiva), Junho de 2017.
[4] Diário de Notícias, de 6 de Setembro de 2018
[5] Público, de 7 de Junho de 2018
[6] Marcelo Rebelo de Sousa, XXXV congresso do PSD, Intervenção de Marcelo Rebelo de Sousa (vídeo), acedido em 15 de Setembro 2018
[7] Marcelo Rebelo de Sousa, XVIII Congresso do PSD (vídeo), acedido em 15 de Setembro de 2018
[8] PS, Agenda para a década

 

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