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Domingo, Dezembro 22, 2024

Lei de Bases da Saúde: o PS na encruzilhada

Vasco Graça
Vasco Graça
Professor. Foi fundador e secretário nacional da FENPROF. Foi diretor adjunto do Departamento da Educação Básica do M.E. Foi deputado municipal do Partido Socialista na Assembleia Municipal de Cascais.

A saúde interessa-nos. É, para todos nós, a fronteira entre a vida e a morte e sentimo-la inevitavelmente como um suporte indispensável à qualidade dos nossos dias. É, portanto, compreensível que os cidadãos considerem o Serviço Nacional de Saúde (SNS) como um bem fundamental da democracia portuguesa.

«Há 15 dias falei novamente com António Costa e disse-me que,
no essencial, o Governo está de acordo
com a proposta e
considera o nosso trabalho meritório. Tenho uma grande
confiança no Governo, nos partidos de esquerda que apoiam o
Governo e nos cidadãos do PSD e do CDS que defendem o SNS»

António Arnaut in Expresso 21.5.18

Simultaneamente, o SNS é, no presente, um dos poucos pilares que restam no “Estado de Bem Estar” que durante décadas foi a bandeira justificativa da Social-Democracia. Claudicar na defesa de um sistema de cuidados de saúde de qualidade e para todos, consequentemente assegurado pelo serviço público, é abrir mão de um dos remanescentes referenciais que preservam os sociais-democratas da inutilidade a que o neoliberalismo os quer condenar.

Por ambos os motivos o debate em curso sobre a nova Lei de Bases da Saúde sendo de primeira importância para o futuro dos portugueses é-o também para o devir do Partido Socialista (PS).

O  debate preparatório desta nova Lei há muito que vem decorrendo ainda que num aparente jogo de sombra sem que retóricas pseudo-consensualistas encobrem o essencial procurando enviesar as análises e as opções. Importaria, para bem dos portugueses e da democracia, que  perante tema de tal relevância o debate fosse aberto, participado e claro.

Alguns referentes significativos

Relembremos, sinteticamente, alguns factos.

  • O Serviço Nacional de Saúde foi aprovado em 1979, por iniciativa de António Arnaut, contando com os votos favoráveis do PS, do PCP e da UDP contra a vontade do PSD e do CDS. O SNS instituiu a rede pública de cuidados de saúde que ainda hoje sobrevive e constitui o principal determinante estrutural de protecção da saúde dos cidadãos.
  • A Lei de Bases da Saúde foi aprovada em 1990  no Governo Cavaco Silva, contando com os votos favoráveis do PSD e do CDS contra a opinião do PS, do PCP e do PRD. Essencialmente, esta Lei, ao instituir o “sistema de saúde” visou favorecer o crescimento do negócio dos grande grupos económicos no sector da saúde. Esta mercantilização  da prestação de cuidados de saúde  haveria de ser feita à custa do financiamento público, da precarização das carreiras profissionais e da consequente delapidação do SNS tal como se tem verificado nos 28 anos entretanto decorridos.
  • Salvar o SNS: uma nova Lei de Bases da Saúde para defender a Democracia” foi o título que António Arnaut e João Semedo deram ao livro que lançaram em Janeiro de 2018 onde propunham o articulado para uma nova Lei de Bases da Saúde. Como explicaram então “apresentámos a proposta de uma nova Lei de Bases da Saúde da actual já nada há a esperar, a direita fez dela a sua plataforma para assaltar o SNS (…). Por isso é tão importante aprovar uma nova Lei de Bases da Saúde”.
  • O ministro da Saúde Adalberto Fernandes nomeou, por despacho de 2 de Fevereiro de 2018,  uma Comissão de Revisão da Lei de Bases da Saúde presidida por Maria de Belém Roseira.
  • O projecto de A. Arnaut e J. Semedo foi, no essencial, assumido em Abril de 2018 pelo Bloco de Esquerda que viria a apresentá-lo, como projecto de Lei, na Assembleia da República em Junho desse ano.
  • «Vamos aguentar o SNS nesta geração e para as próximas gerações porque o SNS veio para ficar e é seguramente uma das grandes marcas do Portugal de Abril» foi, segundo o próprio, o compromisso que o Primeiro Ministro António Costa assumiu com António Arnaut em 19 de maio, dois  dias antes daquele falecer.
  • O Presidente Marcelo Rebelo de Sousa, em 7 de Junho, pronunciou-se publicamente por um “maior denominador comum entre partidos”  para uma Lei de Bases em que “o enquadramento fosse claro na consagração de princípios constitucionais, mas flexível, para permitir adaptação ao que é e vai ser cada vez mais a galopante mudança” com um  “equilíbrio virtuoso entre uma componente pública decisiva, uma componente privada em crescendo e uma componente social em expansão”.
  • Maria de Belém Roseira apresentou aos jornalistas, no dia 19 de Junho, “uma primeira pré-proposta” elaborada pela Comissão a que presidia anunciando que esta estaria pronta em Setembro.
  • Conforme se pode ler no  site da Presidência da República  no dia 6 de Setembro “o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa recebeu, no Palácio de Belém, a Comissão de Revisão da Lei de Bases da Saúde, presidida pela Dra. Maria de Belém Roseira, que veio apresentar a Proposta de Lei de Bases da Saúde, na sequência do trabalho desenvolvido”.
  • O PSD divulgou, a 13 de Setembro, os seus contributos para as  “linhas gerais da grande reformada saúde”.
  • A Comunicação Social anunciou que, no dia 19 de Setembro, a proposta de Lei elaborada pela “Comissão Belém Roseira” iria ser analisada pelo Conselho de Ministros e no início de Outubro chegaria à Assembleia da República. O Governo adiou tais perspectivas.
  • O ministro Adalberto Fernandes foi demitido em 14 de Outubro tendo sido substituído por Marta Temido que declarou pretender aperfeiçoar a proposta de Lei de Bases governamental.
  • O PCP apresentou publicamente, em 21 de Novembro, o seu projecto de Lei de Bases.
  • O Governo aprovou, em 13 de Dezembro a sua proposta de Lei de Bases que, nesse mesmo dia, foi apresentada publicamente pela ministra Marta Temido e dias depois foi publicamente criticada por Maria de Belém Roseira e Adalberto Fernandes.
  • O Presidente Marcelo Rebelo de Sousa, em 14 de Dezembro, defendeu um acordo “entre os Partidos com maior expressão parlamentar” para uma Lei de Bases flexível e insinuou que se assim não fosse vetaria o que viesse a ser aprovado pela Assembleia da República.
  • O Primeiro Ministro, António Costa, em 20 de dezembro, veio dizer que o Governo não acompanha “a ideia, que vinha da proposta de lei de bases da comissão presidida pela Dra. Maria de Belém, de que as prestações do SNS poderiam ser indiferenciadamente prestadas por um hospital público ou por uma entidade privada” e que “a diferença essencial tem que ver com o facto de entendermos que é o momento de termos uma definição muito clara de qual deve ser o papel do sector público e de qual deve ser o papel do sector privado no âmbito do Serviço Nacional de Saúde (SNS)”.
  • O presidente do Grupo Parlamentar do PS, Carlos César, afirmou, no dia 20 de dezembro que a aprovação da Lei de Bases da Saúde “pela sua própria natureza implica um consenso alargado se esse consenso não existir essa Lei não será certamente aprovada”.
  • A Assembleia da República irá iniciar no dia 23 de janeiro os trabalhos de elaboração de uma nova Lei de Bases da Saúde.  Neste momento existem três propostas, por ordem de apresentação: a elaborada por António Arnaut e João Semedo assumida pelo Bloco de Esquerda, a do Partido Comunista Português e a do Governo assumida pelo Partido Socialista.

A agenda da direita económico-política

Estes factos sinalizam alguns acontecimentos, tensões e contradições de um tempo recente em que têm proliferado artigos,conferências e tomadas de posição favoráveis às perspectivas e interesses da direita económico-politica  às quais a comunicação social, com especial empenho do “Observador”, tem dado uma relevância quase diária.

Sob os diáfanos argumentos de que “o setor privado também presta um serviço público”, que o importante é que “o serviço prestado seja ao melhor preço”, que “o Estado não tem, sozinho, meios para assegurar um serviço público universal”,  que”o financiador e o prestador devem ser entidades separadas sujeitas a um regulador independente”, etc.,  o que está verdadeiramente em causa é a continuação do canalizar dos dinheiros públicos para o crescimento dos grande grupos financeiros intervenientes na saúde.

Sobretudo os quatro maiores grupos económicos desta área (Grupo Mello/CUF, FOSUN/Luz, United Health/Lusíadas e Grupo Trofa), com os seus quase 90% do”mercado”, adquiriram um poder financeiro com iniludível penetração política.  A ofensiva estratégica de tais interesses, servida por uma rebuscada retórica neoliberal, há anos que ganhou a dianteira na construção de hegemonia ideológica e de redes de influência favoráveis aos seus propósitos.

Significativamente a Confederação da Indústria Portuguesa (CIP)apresentou, em outubro de 2017, o documento “O Setor da Saúde:organização, concorrência e regulação” para, como, então, salientou o presidente da CIP, António Saraiva, evidenciar “a menorização do papel do setor privado na saúde” e concluir que “a relação entre o SNS e o privado deve existir numa ótica de articulação baseada na complementaridade”. Trata-se de uma ilustração detalhada de um pressuposto “consenso” de “que, como é consabido, no sector da saúde há um conjunto de restrições à liberdade de iniciativa económica privada” pelo que ao Estado deve ser essencialmente atribuído o papel de financiador coadjuvado por uma entidade de regulação, pretensamente independente, para que seja, assim, garantida a estabilidade no crescimento das empresas privadas hospitalares.

Não é despiciendo que tal relatório tenha sido elaborado por António Mendonça Mendes, atual secretário de Estado dos Assuntos Fiscais e irmão da Secretária Geral Adjunta do PS, e por Francisco André, presentemente o Chefe de Gabinete do Primeiro Ministro e membro da Comissão Permanente do PS. Tão pouco é fortuito que na apresentação pública deste “caderno de encargos” da CIP tenham acompanhado o seu Presidente Saraiva  o então ministro Adalberto Fernandes e o reconhecido “articulador” do PS com o mundo dos negócios António Vitorino.

Compreende-se que a direita económico-política precise de envolver o PS no seu projeto de negócio na Saúde no qual a Lei de Bases é um instrumento importante. Talvez por isso a direita parlamentar não tenha ainda apresentado os seus projetos, no provável convencimento de que poderia fazer das ambiguidades essenciais da proposta da ‘Comissão Belém Roseira’ a base para as suas pretensões, .

Pode ter tido, nessa tática, algum contratempo mas os seus objetivos e pretensões estão há muito em cima da mesa e são eles que prevalecem no ambicionado “acordo entre os Partidos com maior expressão parlamentar” com que Marcelo Rebelo de Sousa procurou pressionar a Assembleia da República.

A encruzilhada do PS

Sejamos claros, o PS tem pela frente  uma opção decisiva. O que fizer nos próximos meses vai condicionar o futuro da Saúde em Portugal mas vai também ser determinante para a sua própria caracterização como Partido.

Os cidadãos e, seguramente, a maioria dos socialistas esperam que, no processo de aprovação da futura Lei de Bases da Saúde, o PS seja fiel a três princípios.

O primeiro, o da coerência política. O Partido Socialista sempre assumiu o SNS, configurado por António Arnaut e aprovado por todas as esquerdas parlamentares,  como uma dassuas obras mais importantes. Salvá-lo, depois de duas décadas de constantes ataques, é hoje o dever óbvio dos socialistas. Mas devem-no fazer também por coerência face às posições que defenderam quando em 1990 o PSD e o CDS impuseram, isolados,  uma Lei de Bases dogmática cujo objetivo essencial foi incrementar o negócio privado na saúde à custa do erário público e com a decorrente depauperização do SNS.

A firmeza ideológica é o segundo princípio que os socialistas deverão respeitar. Nos tempos atuais de evidente minimização  da influência da social democracia, do trabalhismo e do socialismo democrático a incapacidade de responder à hegemonia neoliberal tem conduzido  à crescente desproteção dos trabalhadores e ao ressurgimento da extrema direita. A defesa de um serviço público que propicie a todos, sem quaisquer discriminações sociais,  o acesso a cuidados de saúde de qualidade assim como aos benefícios dos progressos científicos neste domínio constitui um marco ideológica de que os socialistas não podem desertar.

Finalmente, o terceiro princípio, é o do rigor na gestão. Não é compatível a afirmação de boas contas públicas e de adequada orientação da economia, de que o PS se quer orgulhar, com a situação de despesismo que a promiscuidade público-privado do atual “sistema de saúde” promove. Como muito bem referiu recentemente António Manuel Arnaut, invocando o seu pai e  fundador do SNS, “é tempo de acabar coma mama” que tem alimentado o crescimento desmesurado do negócio privado na saúde não à conta de iniciativa e de riscos próprios mas da delapidação dos dinheiros públicos.

António Costa tem razão em querer “tapar os alçapões” com que a direita desvirtuou o SNS. É absolutamente certeiro ao dizer: “Não podemos tratar por igual todos os setores. Tal como já deixámos claro que a educação se constrói e se exerce em primeiro lugar através da escola pública – e só subsidiariamente, onde a escola pública não existe através de contratos de associação com entidades privadas -, também no domínio da saúde é preciso deixar claro o seguinte: o SNS exerce-se em primeiro lugar através dos estabelecimentos públicos“.

Mas para que tal desiderato se realize e o património de António Arnaut seja efetivamente salvo para as próximas gerações a proposta apresentada pelo Governo é insuficiente. Nela permanecem ambiguidades e ausências que importa venham a ser superadas na Assembleia da República em criativa conjugação com as propostas de Arnaut/Semedo (BE) e do PCP.

A futura Lei de Bases da Saúde terá que ser mais do que um mero enunciado geral e flexível suscetível de interpretações antagónicas ou que remeta o travejamento essencial do SNS para um qualquer futuro Estatuto mais suscetível de se adaptar a interesses conjunturais. Os “alçapões” da direita são muitos, desde a municipalização à desvalorização dos profissionais,para além da questão do papel que incumbe ao Estado na prestação de um serviço universal de qualidade e da sua relação com o sector privado.

Ao contrário do que pretende propalar a direita nenhum dos três projetos apresentados no Parlamento ataca ou pretende excluir os sectores privados na saúde. Apenas perspetivam, com notáveis complementaridades, propostas adequadas para a salvação e o relançamento do Serviço Nacional de Saúde constitucionalmente consagrado como um bem da democracia e de todos os cidadãos.

Dos deputados que se sentam à esquerda do Parlamento, muito em especial dos socialistas, espera-se capacidade de diálogo e inteligência num processo em que o resultado final pode ser melhor do que os três documentos de partida. Agora não estão em causa sensibilidades tauromáquicas nem ‘causas fraturantes’ mas antes direitos e aspirações fundamentais dos cidadãos que marcarão, nos próximos anos, a vida de cada português e a avaliação que a sociedade fará do préstimo das diversas correntes políticas.

Não tenho qualquer ingenuidade sobre o poder e a capacidade de lobismo da direita económico-politica. Mas acredito que Partido Socialista compreende a indispensabilidade de respeitar um seu referencial histórico e que irá estar à altura do desafio com que está confrontado.

Os próximos tempos trar-nos-ão respostas clarificadoras.

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