O escritor Salman Rushdie paga com a integridade física o preço da liberdade artística, depois que escreveu um livro questionando a sacralidade do Alcorão.
Um dos livros mais controversos da história literária recente, “Os Versos Satânicos”, de Salman Rushdie, completa 34 anos, no próximo mês, e quase imediatamente desencadeou manifestações furiosas em todo o mundo, algumas delas violentas.
Um ano depois, em 1989, o líder supremo do Irã, o aiatolá Khomeini , emitiu uma fatwa, ou decisão religiosa, ordenando que os muçulmanos matassem o autor por blasfêmia contra o profeta Muhammad. A blasfêmia contra Maomé é um crime imperdoável no Islã. Um conhecido ditado farsi, Ba khuda diwana basho; ba muhammad hoshiyar , diz “tome liberdades com Allah como desejar; mas tenha cuidado com Muhammad”.
Nascido na Índia em uma família muçulmana laica, mas na época um cidadão britânico morando no Reino Unido, Rushdie foi forçado a se esconder por quase uma década. Nos últimos anos dispensou os guardas que o protegiam e passou a se expor mais publicamente.
O suposto anti-islamismo do livro acabou ofuscando uma longa carreira de livros premiados, como seu segundo romance vencedor do Booker, Os filhos da meia-noite (1981) – e a aclamação da crítica que se seguiu a seus romances mais criativos, ou seja, Vergonha (1983), O Último Suspiro do Mouro (1995), O chão que ela pisa (1999) e A feiticeira de Florença (2008).
A Chautauqua Institution, a sudoeste de Buffalo, no estado de Nova York, é conhecida por suas palestras de verão – e por ser um lugar onde as pessoas vão em busca de paz e serenidade. Rushdie já havia falado no centro antes.
Na última sexta-feira, ele foi convidado a falar sobre um assunto muito caro à sua luta: a situação dos escritores na Ucrânia e a responsabilidade ética dos estados-nação liberais em relação a eles. Rushdie tem sido um defensor ferrenho da liberdade de expressão dos escritores ao longo de sua carreira.
Na platéia de cerca de 2.500 pessoas estava o jovem Hadi Matar, de 24 anos, de Nova Jersey, que pulou no palco e esfaqueou Rushdie no pescoço e no abdômen. Embora Rushdie esteja sem ventilação, seus ferimentos permanecem graves. Como seu agente Andrew Wylie disse, ele deve se recuperar, mas pode perder um olho e talvez até o uso de um braço.
O que estava – e ainda está – por trás dessa indignação? A especialista em Religiões Contemporâneas da Union Institute & University, em Chicago (EUA), Myriam Renaud, explica em artigo escrito por ocasião dos 30 anos do livro, em 2018, ao The Conversation.
A controvérsia
Segundo Myriam, o livro “Versos Satânicos” vai ao coração das crenças religiosas muçulmanas quando Rushdie, em sequências de sonhos, desafia e às vezes parece zombar de alguns de seus princípios mais sensíveis.
Os muçulmanos acreditam que o profeta Maomé foi visitado pelo anjo Gibreel que, durante um período de 22 anos, recitou as palavras de Deus para ele. Por sua vez, Muhammed repetiu as palavras para seus seguidores. Essas palavras foram eventualmente escritas e se tornaram os versículos e capítulos do Alcorão.
O romance de Rushdie retoma essas crenças centrais. Um dos personagens principais, Gibreel Farishta, tem uma série de sonhos em que se torna seu xará, o anjo. Nesses sonhos, ele encontra outro personagem central de maneiras que ecoam o relato tradicional do Islã sobre os encontros do anjo com Maomé.
Rushdie escolhe um nome provocativo para Muhammed. A versão do profeta do romance é chamada Mahound – um nome alternativo para Muhammed às vezes usado durante a Idade Média pelos cristãos que o consideravam um demônio .
Além disso, o Mahound de Rushdie coloca suas próprias palavras na boca do anjo Gibreel e entrega decretos a seus seguidores que convenientemente reforçam seus propósitos egoístas. Embora, no livro, o escriba fictício de Mahound, Salman, o Persa, rejeite a autenticidade das recitações de seu mestre, ele as registra como se fossem de Deus.
No livro de Rushdie, Salman, por exemplo, atribui certas passagens reais do Alcorão que colocam os homens “responsáveis pelas mulheres” e dão aos homens o direito de agredir as esposas de quem eles “temem a arrogância”, às visões sexistas de Mahound.
Através de Mahound, Rushdie parece lançar dúvidas sobre a natureza divina do Alcorão.
Textos religiosos inquestionáveis
Para muitos muçulmanos, Rushdie, em seu relato ficcional do nascimento dos principais eventos do Islã, implica que, em vez de Deus, o próprio profeta Maomé é a fonte das verdades reveladas.
Em defesa de Rushdie, alguns estudiosos argumentam que sua “zombaria irreverente” pretende explorar se é possível separar fato de ficção. O especialista em literatura Greg Rubinson ressalta que Gibreel é incapaz de decidir o que é real e o que é um sonho.
Desde a publicação de “Os Versos Satânicos”, Rushdie argumentou que os textos religiosos deveriam estar abertos ao desafio. “Por que não podemos debater o Islã?” Rushdie disse em uma entrevista de 2015. “É possível respeitar os indivíduos, protegê-los da intolerância, sendo céticos em relação às suas ideias, até mesmo criticando-os ferozmente.”
Essa visão, no entanto, colide com a visão daqueles para quem o Alcorão é a palavra literal de Deus.
Após a morte de Khomeini, o governo do Irã anunciou em 1998 que não realizaria sua fatwa ou encorajaria outros a fazê-lo. Rushdie agora vive nos Estados Unidos e faz aparições públicas regulares.
Ainda assim, 30 anos depois, as ameaças contra sua vida persistem. Embora os protestos em massa tenham parado, os temas e questões levantadas em seu romance permanecem muito debatidos.
Oriente e Ocidente
O professor de Inglês e Literatura Comparada da Universidade de Murdoch (Perth, Austrália), Vijay Mishra, escreveu que Rushdie se tornou um bode expiatório das diferenças profundas entre o ocidente laico e o oriente islâmico, no que se refere à responsabilidade artística.
Em artigo o The Conversation, ele lembra que, desde um ensaio da Time de 1989 sobre a fatwa, o debate em curso sobre Rushdie expôs as divisões entre o Ocidente e o Islã que até então permaneciam ignoradas. Haveria uma diferença radical entre o que constitui responsabilidade artística no Ocidente e no Oriente (islâmico).
Esse discurso de diferença radical já havia entrado na academia humanista europeia, como Edward Said registrou em seu livro magistral de 1979, Orientalismo. Muitos argumentaram que os Versos Satânicos de Salman Rushdie deram ao debate um foco – e um objeto tangível que poderia ser apontado como um exemplo definitivo do antagonismo do Ocidente em relação ao Islã.
Rushdie queria apenas ser um romancista, mas a fatwa transformou-o dramaticamente em um ícone cultural que representa a importância da liberdade de expressão de um escritor. “A experiência de Rushdie também apresenta o desafio de como negociar essa liberdade entre culturas – especialmente com culturas governadas por absolutos morais e religiosos cuidadosamente definidos”, diz Mishra.
por Cézar Xavier | Texto em português do Brasil
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