O Brasil, pelo que sei, nunca esteve em uma situação ideal política e econômica para sediar megaeventos, como o Pan 2007 ou as Olimpíadas 2016.
As organizações dessas competições sempre se envolveram ou enfrentaram manipulação midiática e política, além de, forçosamente, usarem verba pública em obras que, a um rápido olhar, poderia ser usada em “justiça social”, como elencou Valter Hugo Mãe em texto que reproduzo a seguir.
Aviso que não estamos em tempos de raciocínios simplórios e garanto que as obras construídas no Rio, como linhas de metrô, podem beneficiar mais do que o bolso de patrocinador ou de um político corrupto, resultando em algum bem-estar social a médio ou longo prazo, como a mobilidade urbana.
Indo mais longe: a cobertura na televisão mostra brasileiros comuns (podem checar na próxima reportagem a que assistirem) chegando ao Rio como turistas. Não são representantes da famosa elite (que se veste diferente, fala diferente, já conhece o Rio à exaustão, jamais protagonizaria papel de turista naquelas praias).
Digamos que esse é um ponto para o evento; temos o povo no meio do público, que também traz estrangeiros. Além de atletas. Vamos falar sobre eles.
Ser atleta no Brasil, por incrível que pareça aos leigos, é mais difícil do que ser ator principal em uma novela da TV Globo. Para dar uma ideia: na equipe oficial de atletas olímpicos brasileiros, hoje, temos cerca de 290 que são da região Sudeste do país, por outro lado, apenas 6 são da Região Norte. Dá para perceber que é preciso ter grana ou acesso a patrocínio para entrar nessa competição.
E nossos atletas estão lá (somam 465 — 209 mulheres e 256 homens–, a maioria está estreando na competição). Menos preocupados com qual presidente do País abrirá o evento (a não ser pelo Michel Temer, que não tem como escapar, todos os outros, até Sarney, recusaram o convite) e bastante convictos de que estão representando as conquistas de uma nação.
Sim, há interesses pessoais em jogo, mas ser atleta olímpico equivale a uma vida inteira (com renúncia inclusive a férias que a maioria das crianças e adolescentes usufrui) dedicada a extensos e duros treinos.
Representar o Brasil em uma competição internacional é desejo de todos, não se trata de “manipulação política”, é uma realidade.
A nossa vocação para o esporte (assim como para a música, para dar dois exemplos apenas) também é uma realidade, reconhecida por ilustres, como o escritor português Valter Hugo Mãe, mais “brasileiro” que nós quando declara: “ meu coração sempre quer que o brasil seja um sucesso. eu adoro que os gringos saibam de caetano e chico, bethânia e marisa e se embasbaquem. sinto orgulho em cada coisa boa do brasil e colecciono esse amor com toda a alegria. por isso me dói duvidar destas olimpíadas. quero que sejam as melhores de sempre…”
Cortei a fala do Mãe justamente quando ele vai fazer referência ao fato de que o megaevento “mascara problemas profundos de que era preciso cuidar primeiro. Falta uma semana e não dá tempo de criar justiça social”, diz. Conclui dizendo que sempre esperará por um “milagre”.
O escritor sabe e todos sabemos que não existe milagre que faça justiça social em uma semana. Por isso, defendo que essa luta, maior e eterna, continue sendo identificada com a nossa participação crítica, constante, em movimentos populares, políticos.
Esse é o palco, nunca a Vila Olímpica, que levará momentâneo prestígio ao presidente do COI (Comitê Olímpico Internacional), lamento, mas também aos atletas participantes e coadjuvantes, o que comemoro.
Mudando o assunto para continuar o assunto: em 2007, tivemos os Jogos Pan-Americanos no mesmo Rio de Janeiro. Por conta de uma revista que eu lancei cerca de um ano depois, descobri que muitas das obras realizadas em tempo recorde para viabilizar o evento estavam abandonadas. Descobri também como o Brasil estava despreparado (naquela época, torço para que tenhamos avançado nessa categoria) para dar formação a atletas.
Durante um almoço, do qual participei a convite de pessoas que trabalhavam com natação no Ministério do Esporte, conheci um russo (consagrado treinador de saltos ornamentais, disseram-me) que estava sendo sondado para trabalhar no Brasil, simplesmente porque não tínhamos treinadores na área. O russo, percebendo que eu era peixe fora d´água como ele, perguntou-me particularmente num péssimo inglês: “essa universidade que quer me contratar é sólida, é séria?” Queria saber se podia àquela altura (deveria ter um 60 anos, pela aparência) deixar a Rússia e ir trabalhar em uma cidadezinha na região Sul do Brasil.
Sim, garanti. A instituição privada era séria, construiu o primeiro ginásio coberto de saltos ornamentais do País, que estava sendo inaugurado na época. Todos os que participavam daquele almoço, pós-Pan, eram muito sérios e espero que essa modalidade esportiva tenha crescido minimamente depois desses esforços, resultantes, de certa forma, do “mascaramento de problemas sociais” para a realização (inevitável) de obras do Pan.
O que estou tentando explicar é que há muitos sonhos sendo realizados quando um evento desse porte acontece e há muitos avanços – na área, não estou falando do bolso de anunciantes ou dos veículos jornalísticos de transmissão, nem mesmo de bolso de político envolvido nos bastidores – que podem contribuir, depois, para os avanços do esporte no Brasil.
Para tentar demonstrar o sentimento de outros participantes (ex-atleta, no caso) de um evento como esse, transcrevo a seguir a crônica de um jovem que carregou a “tocha do Pan”, em 2007. Entre 60 convidados, ele foi o número 47º a pegar a chama e correr com ela.
A CHAMA DO PAN
(por Hot Black*)
“(…) lá estávamos (eu e mais 19 dos 60), cada um contando para todos os presentes qual a razão de ter sido escolhido, entre tantos nomes na cidade. E lá falaram: Wellington Elias – radialista esportivo com seus 80 anos –, Orlando Vieira – ator e diretor, já protagonizou filmes e novelas na Rede Globo -, Sidraque Marinho árbitro profissional, já apitou finais de campeonatos brasileiros e jogos da seleção. Mano, tinha até ex-atleta de outros jogos Panamericanos e eu falei…
Sou Anderson. Mas a rua me deu o nome de Ganso ou Hot Black. Não foi o esporte que me trouxe até aqui e sim minha caminhada social. Apesar de praticar skate, hoje com menos frequência que antes, atuo no campo dos trabalhos sociais. Sou militante do movimento hip-hop aqui em Aracaju, onde moro. Desenvolvo com meus manos e aliados atividades em bairros de periferia. Projetos como FACE, Rima´racaju, Caminhada do hip-hop e Grito da Periferia foram algumas das atividades que tive o prazer de realizar nas periferias da minha cidade, mostrando a centenas de milhares de jovens que a música, a arte, assim como o esporte, salvam.
Eu sou uma prova disso. O hip-hop me salvou das armadilhas em que caíram meus amigos de infância, o crime e as drogas. Muitos morreram. Esse movimento me deu valor, não preço. Se cheguei até aqui é porque tenho muito chão ainda pra trilhar e trilharei, hoje com a certeza de que o que faço tem respaldo em outros ambientes. Muito obrigado!
Fui aplaudido e senti uma coisa boa nesse momento, a sensação de ser visto como vencedor aos vinte nove anos utilizando o hip-hop. Ainda me lembro da Tamara** reforçando:
– Cada um de vocês tem uma importância imensurável para sua cidade.
E o toque foi dado via radioamador…
Uma voz agitada pedia que todos fossem para dentro da van que logo seríamos deixados nos respectivos locais de condução. Corremos pro ônibus e na espera fui solicitado a fazer um Freestyle ao som de palmas e agitação. Rimas e mais rimas até o condutor de número 40 receber a tocha…
– Vamos motorista. Agora é hora.
Partimos rumo aos nossos pontos e a cada deixada via no olhar dos “tocheiros” – como éramos chamados – a imensa satisfação de ser um dos 60. A ficha caiu quando uma das meninas de sobrenome “Amador” disse: o número 47 desce no próximo.
Pronto! Era o meu momento de conduzir por um percurso de 400 metros o símbolo do Pan: a tocha. Das mãos do campeão de fullcontact, Falcão – esse que se recuperou de um acidente gravíssimo de moto – repassou para as minhas mãos e disse:
– Agora é a vez da periferia, do hip-hop, seu momento…
Aos olhares dos moradores da Coroa do Meio – local onde antes morava-se em palafitas, hoje, em casas dum novo conjunto – foram calorosos com a minha pessoa e eu pouco pude desfrutar do momento. Quando dei por mim, fui avisado que entregaria nos próximos metros a tocha ao condutor 48. Confesso que foi tão rápido que não notei a distância e no pique que ia eu correria um dois quilômetros ou mais.
A menos de uma semana pro início dos jogos Pan-Americanos Rio 2007, a mídia insiste em mostrar mais a violência do Rio de Janeiro que a própria importância desse fato pro Brasil e seus competidores. Mas por outro lado exibem com glamour as casas cheias em campeonatos de futebol carioca com seus “clássicos”.
Bom, não acredito que serei lembrado pro resto da vida por isso, mas sei que me lembrarei disso pro resto da minha vida.
Acredito que fui o único representante do hip-hop a conduzir a tal “tocha”. O que não me envaidece e nem me expõe, e sim reforça ainda mais o compromisso de fazer o que faço com seriedade e amor, pois o que tiver de ser será.”
*HOT BLACK é MC do grupo Mensanegra, fundador da posse Familiativista. Apresentador do programa Periferia na TV Aperipê-SE, membro da Nação Hip-Hop Brasil – o artigo integra o livro “Hip-Hop a lápis – Literatura do Oprimido”, organização de Toni C., São Paulo, Editora do autor, 2009.
**TAMARA era uma das coordenadoras no revezamento dos “tocheiros” do Pan Rio 2007.
Nota: a autora escreve em português do Brasil