A liberdade de imprensa é um valor essencial numa democracia porque ela é instrumental ao exercício de dois outros valores que não se realizam sem ela e que são o direito de informar e de ser informado. A liberdade de imprensa não é um privilégio dos jornalistas mas antes uma condição da liberdade de expressão dos cidadãos. Uma vez que os cidadãos não podem captar directamente senão um conjunto muito limitado de acontecimentos ocorridos no mundo, dependem das representações da realidade transmitidas pelos media. Nas sociedades democráticas a diversidade do sistema mediático – que pressupõe a existência de media públicos e privados, jornalismo independente, mecanismos de auto-regulação e não concentração de títulos – é uma garantia de pluralismo e de diversidade da informação.
Não admira, pois, que sempre que um poder externo à auto-regulação dos jornalistas impõe a um meio de comunicação social restrições à liberdade de imprensa, isso seja visto como uma ameaça à democracia e ao direito à informação.
A proibição imposta pelo tribunal aos títulos do grupo Cofina, impedindo-os de publicarem elementos do processo Marquês, provocou reacções esperadas de condenação, em nome da liberdade de imprensa, valor essencial de uma democracia.
Não basta, porém, ficar por aí. Afirmados esses princípios, cabe aos jornalistas aprofundar as condições em que a decisão do tribunal se processou, independentemente da discussão jurídica que tem a sua sede própria. Ora, este caso concreto levanta uma questão essencial no jornalismo que é a sua relação com as fontes de informação e o escrutínio destas que os jornalistas não podem deixar de fazer, sejam elas quais forem.
Como é conhecido, na grande maioria dos casos a informação sobre processos judiciais envolvendo figuras públicas resulta de fugas de informação e de outras formas de acesso privilegiado concedido a jornalistas que cultivam fontes bem colocadas em instituições da justiça. A palavra “cultivam” é aqui apropriada, na medida em que se trata de relações alimentadas durante muito tempo, criando cumplicidades e interesses comuns. A notoriedade de que beneficiam alguns magistrados encarregados de processos que envolvem escândalos políticos deve-se sobretudo ao apoio que conseguem dos media. Alguns deles tornam-se depois colaboradores de órgãos de comunicação social que alimentaram antes enquanto fontes.
Os estudos jornalísticos mostram que os jornalistas que acompanham durante muito tempo determinadas instituições, sejam da justiça, das finanças ou da política, tornam-se quase seus porta-vozes perdendo o distanciamento e assumindo a sua cultura e os seus valores. Nos casos judiciais a que temos assistido, a cobertura jornalística é geralmente seguidista e acrítica relativamente ao Ministério Público e à Polícia Judiciária, limitando-se a relatar elementos da acusação que não podem ser escrutinados pelos jornalistas segundo as regras da sua profissão. Essas regras não se confundem com a investigação judicial. O jornalista não usa meios de coacção para extorquir informação e confissão a um arguido. O investigador policial pode usar esses meios. Ora, quando o jornalista não conhece os meios e os métodos usados pelos agentes judiciais na obtenção da informação que lhe é facultada e se limita a publicá-la sem explicar aos leitores como a obteve nem as limitações que a caracterizam, está a violar regras básicas da sua profissão. É, por exemplo, o caso da publicação de escutas telefónicas transcritas para um processo judicial que não são mais do que resumos feitos por agentes policiais segundo os seus próprios critérios que são os da acusação. O jornalista está, nestes casos, a receber e a publicar informação em segunda ou terceira mão que não pode controlar.
A figura do jornalista-assistente, que tudo indica estar na origem da decisão do tribunal relativamente ao grupo Cofina, deveria merecer uma discussão aprofundada entre os jornalistas, dado conflituar com a independência e a equidistância que o jornalista deve manter relativamente às suas fontes, neste caso o Ministério Público e a Polícia Judiciária.
Um jornalista-assistente coloca-se do lado do Ministério Público, isto é da acusação, assumindo os seus valores e a sua verdade. Nesta situação, o jornalista torna-se parte do processo, participando das actividades sobre as quais escreve, o que é contrário à ética e à deontologia da profissão.
A defesa da liberdade de imprensa é inseparável da defesa dos valores e dos princípios que regem a actividade jornalística, os quais não se coadunam com a dependência e o seguidismo que se têm verificado na cobertura dos casos judiciais que envolvem o ex-primeiro-ministro e outras figuras públicas.
Se o escrutínio dos poderes, entre os quais o poder político, é uma das mais importantes funções do jornalismo não se compreende por que razão o poder judicial escapa a esse escrutínio.