Mas neste primeiro de Maio, em Portugal e na Europa, falou-se muito do que é costume como se nada tivesse acontecido e diante da tribuna dos dirigentes estivesse a massa humana do costume. O discurso foi o sermão do costume como se o que aconteceu e está a acontecer fosse um fenómeno meteorológico, um tornado que levou o telhado, uma cheia.
Faz parte do anedotário da Guarda Republicana. Um chefe de um posto onde ocorreram uma série de desastres e altercações, interrogado por um superior, que pergunta: Alguma novidade? responde: Sem novidade! Só a partir daí descreve os acontecimentos, acidentes, facadas, roubos, incêndios, desaparecimentos. É uma versão da anedota do diálogo do feitor com a marquesa: “tout va bien, madame”…
Assim foi o 1º de Maio em Portugal e pelo que vi um pouco na televisão pela Europa. Sem novidade! Tout va bien…
Mas devia haver novidades e anúncios de novidades por parte dos dirigentes sindicais. E houve, infelizmente, a novidade de os dirigentes sindicais europeus não se terem apercebido dela, ou não saberem o que fazer com ela.
Na sessão do 25 de Abril de 2020, na Assembleia da República, os dois ou três discursos que a marcaram, em particular o do Presidente da República, centraram-se num bem que existe e que a sociedade portuguesa quer que exista e se aprofunde: a Liberdade. O cenário e a encenação em que a mensagem foi transmitida mereceram críticas, umas de ordem estética e cenográfica, outras de contestação absoluta ao conceito de liberdade e ao valor do que ela representa em si mesmo. Mas o importante era e foi a mensagem: A Liberdade é um valor inestimável para a grande maioria dos portugueses, que a sentem e desejam que ela seja o suporte das indispensáveis e inevitáveis transformações da sociedade.
A mensagem dos responsáveis sindicais portugueses do dia 1º de Maio de 2020 em Portugal foi o oposto desta, infelizmente. Foi uma voz de um tempo que já não existe numa cerimónia digna, sem novidade nem chama, a assinalar uma data que deve ser celebrada e aproveitada para mobilizar energias.
A data era propícia aos dirigentes sindicais transmitirem à sociedade o seu conceito de trabalho e de trabalhador num tempo em que um vírus colocou em causa a escala de valor dos produtos essenciais, os materiais e os imateriais. Um tempo e um acontecimento que colocou em causa a noção de riqueza, no sentido do que deve ser produzido a partir de agora que acrescente valor à natureza e sirva os seres humanos. Conforme aos costumes e como na antiga GNR: Nada!
Todos os elementos de uma sociedade devem ter a noção do papel que desempenham nela, como cada árvore numa floresta. Trabalhador não é uma espécie do tipo dos bonés de praia em que um número serve a todos (one size fits all) nem quanto à forma como vende a sua energia (força física, talentos e habilidades várias), nem como ele se percebe a si mesmo, nem como se valoriza socialmente, nem como a sociedade o aprecia, nem quanto ao degrau em que o modo de produção o coloca, o remunera e o responsabiliza.
Nenhuma ocasião é melhor (ou pior) que a de ver a casa desabar para nos interrogarmos sobre o que vamos fazer. Mudar de planeta não é possível. Vamos reconstruir, replicando a que acabou de desmoronar, ou construir uma casa nova?
Esta epidemia destruiu (ou arruinou) a nossa casa, entendida como a civilização que resultou da Segunda Guerra Mundial no século passado, no chamado mundo Ocidental e, mais perto, a que se impôs após o fim da URSS, com a globalização e a supremacia mundial dos Estados Unidos, anos 80. Esta crise provocou um cataclismo na hierarquia dos valores, por desvalorização do trabalho e hipervalorização da especulação. Era contra esta perversão que, julgo, os dirigentes sindicais deveriam ter apontado baterias.
Mas neste primeiro de Maio, em Portugal e na Europa, falou-se muito do que é costume como se nada tivesse acontecido e diante da tribuna dos dirigentes estivesse a massa humana do costume. Falou-se de trabalhadores dos serviços públicos e de prestadores de serviços interpessoais, assistenciais, da saúde e do serviço social e também do ensino, como se nada de verdadeiramente decisivo tivesse ocorrido. Acusaram-se como de costume os patrões de aproveitaram para despedir e embaratecer o fator trabalho, o Estado de estar ao lado dos patrões. O discurso foi o sermão do costume como se o que aconteceu e está a acontecer fosse um fenómeno meteorológico, um tornado que levou o telhado, uma cheia.
O essencial foi ignorado: o modelo de sociedade que gera a riqueza que paga os serviços assistenciais, os heróis do 1º de Maio de 2020, os profissionais da saúde e os funcionários públicos, está KO, a cair aos poucos no tapete e não se levantará, julgo, a não ser para cambalear e cair de novo. Houve “heróis” porque este ano houve riqueza acumulada para lhes pagar salários, horas extraordinárias, para lhes pagar máquinas, equipamentos, produtos para executarem as suas tarefas e havia, na Europa, um estado de bem-estar com as políticas mais ou menos desenvolvidas de serviços públicos universais.
Conviria ter sido dito que a riqueza para pagar aos trabalhadores dos serviços foi produzida a montante, no setor primário, essencialmente extrativo de riquezas naturais e do setor secundário, o transformador e que as políticas sociais são o resultado de um Estado de contrato social que é, infelizmente para grande parte dos habitantes do planeta, apenas um produto europeu. Os trabalhadores europeus deviam ter consciência disso.
Se nada mudar no modo como valorizamos os setores produtivos, e os discursos foram dirigidos para a distribuição, e se não defendermos o modelo político suportou e está a suportar esta crise, e os discursos foram, como de costume, contra ele, para o ano já não haverá “heróis da 1ª linha de combate” porque para o ano não haverá riqueza disponível para pagar estes serviços, nem aqui em Portugal, nem na Europa. Basta ver a imagem do planisfério que circula nas redes sociais com os milhares de pontos vermelhos a representar petroleiros espalhados pelo planeta sem locais para descarregar o petróleo para percebermos que os setores extrativo e transformador entraram em letargia. Não vai ser extraída riqueza da terra (produtos alimentares e matérias primas), nem vão ser transformas matérias primas em produtos consumíveis. Outras imagens que anunciam um futuro que exige respostas são as dos milhares de aviões alinhados nas pistas. Muitas jamais voarão. E não serão necessários mais. E as ruas desertas das grandes capitais do turismo, Veneza, Roma, Paris, as praias desertas, os monumentos fechados, os monstruosos navios de cruzeiros nas docas, onde muitos se transformarão em sucata. O que pensam os dirigentes sindicais sobre o destino dos trabalhadores destes setores?
Que trabalhadores haverá para o ano para celebrar o 1º de Maio?
Era sobre o futuro que teria sido importante ouvir falar este 1º de Maio.
Por opção do autor, este artigo respeita o AO90
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