Foi conhecida na passada 3ª feira, 14 de Março, uma nova decisão do TJUE – Tribunal de Justiça da União Europeia que consagrou o entendimento de que uma empresa pode legitimamente proibir os respectivos trabalhadores de usarem qualquer símbolo religioso, designadamente o véu islâmico, ou político, por alegadamente tal proibição ou regulamento patronal “não constituir uma discriminação directa por motivos religiosos, políticos ou filosóficos”.
Antes de mais, em qualquer caso e a bem de uma correcta análise da questão, convirá salientar que, apesar de tudo, no referido Acórdão, o Tribunal de Justiça, no caso da cidadã belga Samira Achbita, remeteu para os Tribunais nacionais belgas a tarefa de avaliarem se o regulamento interno da empresa (que proibiu o uso do véu islâmico) não coloca as pessoas de uma determinada religião em desvantagem relativamente a outras (ou seja, se afinal não se verifica a chamada “discriminação indirecta”) e, no caso da cidadã francesa Asma Bougnaoui proclamou que a proibição só será legítima se resultar da aplicação de uma regra geral e abstracta interna e não, por exemplo, da mera reclamação apresentada por um cliente da empresa, a qual não poderá ser considerada “uma exigência profissional que exclua a discriminação” e por isso que possa ser justificadora da referida proibição.
Em qualquer caso, mesmo com estas precisões e explicitações, discordo em absoluto e veementemente desta tese do Tribunal de Justiça da União Europeia. Que visa claramente tentar “encaixar” a legitimação da proibição no teor da Directiva nº 2000/78/CE, de 27 de Novembro (contra a discriminação e pelo respeito da igualdade de tratamento, independentemente da raça ou origem étnica, religião ou crença, deficiência, idade ou orientação sexual, tanto em matéria de acesso ao emprego como uma matéria das condições de emprego, de trabalho e de promoção). Mas que retoma uma concepção proibitiva e restritiva há muito adoptada pelo (noutras matérias libérrimo) Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, que a tem consagrado em vários dos seus Acórdãos[1].
A liberdade religiosa nas Convenções Internacionais
Ora, antes de mais, importa sublinhar que quer a nossa Constituição, no seu artigo 41º, quer a Convenção Europeia dos Direitos do Homem, no respectivo artigo 9º, quer a Declaração Universal dos Direitos do Homem, no artigo 18º, consagram clara e explicitamente a liberdade religiosa, e sempre se tem entendido que esta abrange não apenas os ritos, as cerimónias e o ensino como também as práticas e os costumes, de entre os quais ressalta o uso de símbolos ou de certo tipo de vestuário.
Por outro lado, o princípio da concordância prática entre os vários direitos às diversas crenças religiosas, políticas ou filosóficas tem de ser sempre complementado pelo chamado princípio da tolerância, de molde a respeitarem-se tanto quanto possível as liberdades de cada um.
Acresce que, mesmo relativamente a entidades públicas (como escolas, hospitais ou repartições públicas), uma coisa é o princípio básico da neutralidade (e, no nosso caso, da laicidade) do Estado – que de todo não se confunde com a intolerável cedência ao preconceito – e outra, bem distinta, é o respeito pela liberdade individual de cada cidadão que naquelas entidades trabalha ou a elas recorre.
Na verdade, que diferença me pode legitimamente fazer, ao ser atendido num serviço público, que o funcionário que cumpre essa tarefa seja portador de um qualquer emblema político, símbolo filosófico ou veste religiosa? Que razão, a não ser o já referido preconceito, pode levar a sustentar, com base nessa circunstância, que a correcção, a justiça, a imparcialidade ou a boa fé da Administração possam ser por ela postas em causa? Rigorosamente nenhuma!
Mas se isto é assim no domínio público, por maioria de razão o é também no campo laboral privado.
Feudalismo industrial
É que, antes de mais e ao contrário do que pretendem sustentar algumas concepções próprias do chamado “feudalismo industrial”, nem o trabalhador perde a sua qualidade de cidadão de pleno direito ao transpor a porta de entrada da empresa, nem ele transacciona ou aliena, por meio e por força do contrato de trabalho que celebre, o seu direito à imagem, e muito menos a sua consciência e a sua liberdade de crença política, filosófica ou religiosa.
E, já agora, também não é pelo facto de regras violentadoras desses direitos constitucionais constarem de um qualquer “regulamento” ou “código de ética” já existente à data da celebração do contrato ou a que, por via deste, se declare formalmente aderir, que tais regras se tornam “legítimas”, menos ainda quando – como hoje quase sempre sucede – o trabalhador se limita a apor a sua assinatura num escrito todo previamente elaborado pelo empregador e cujo conteúdo ele, trabalhador, não teve qualquer possibilidade prática de influenciar.
E, sobretudo, se se aceita que, em nome de uma pretensa “neutralidade”, o uso de um certo vestuário ou de um determinado símbolo possa ser proibido, ou porque não corresponde ao pensamento dominante ou porque quem detém o poder de autoridade entende que há, ou pode haver, terceiros (sejam eles colegas ou clientes) que se podem sentir por tal incomodados, ou simplesmente porque “ali é a casa dele, ali manda ele e quem está mal que se mude”, estará então escancarada a porta aos maiores abusos, violadores das mais elementares liberdades cívicas.
Na verdade – e sempre, é claro, em nome de que se trata de preservar aquilo que alguém decidiu, arbitrária e autoritariamente, dever ser a imagem da instituição ou da empresa e a sua “neutralidade” – seguir-se-ia a legitimação de regras e regulamentos (ditos “gerais e abstractos”, alegadamente decorrentes de princípios objectivos e não discriminatórios…) proibindo os cabelos compridos, ou as mini-saias, ou as calças de ganga, ou a ausência de maquilhagem para as mulheres, ou a simples detenção de um jornal partidário ou de um panfleto sindical, ou, enfim, a mera expressão de uma opinião sobre esta ou aquela questão de actualidade política ou social!
Regresso a um passado sinistro
Não, não é um exagero. Porque é exactamente o mesmo tipo de argumentos que agora se invocam para fundamentar a proibição do uso de um véu de cariz religioso ou de um emblema de natureza política ou sindical que amanhã será utilizado para justificar a intensificação do proibicionismo contra tudo o que mexa ou seja visto como contrário à “moralidade e bons costumes” dominantes. Afinal, de forma cada vez mais parecida com o que por cá se fazia antes do 25 de Abril de 1974.
É certo que esta escalada restritiva e repressiva já há muito que começou, mas está agora a agravar-se consideravelmente e sempre em detrimento de quem em cada momento é minoritário, mais vulnerável e mais fraco (como é o caso das comunidades muçulmana, cigana, das minorias étnicas e políticas, por exemplo).
E os Tribunais Internacionais europeus, como o Tribunal de Justiça da União Europeia e do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem – que tanto gostam de proclamar formalmente outras liberdades (como a liberdade de expressão até ao insulto, no caso do TEDH, e das liberdades de circulação de capitais e de iniciativa económica privada, no caso do TJUE), ao legitimarem assim as restrições nacionais mais injustas e absurdas, estão afinal a transformar-se, na feliz expressão de Inês Granja Afonso Costa, numa “esponja absorvente” de todas essas restrições ao uso de símbolos religiosos, mas também políticos e até filosóficos ou profissionais, contribuindo assim para uma progressiva limitação das liberdades e para a imposição da mais asfixiante ditadura do pensamento dominante.
E não nos iludamos: daí até à justificação do silenciamento, do despedimento, da purga ou até da eliminação dos que pensam, falam, usam ou vestem diferente vai apenas um pequeno passo…
Não, não vamos por aí!
[1] Por exemplo, Karaduman c. Turquia, 1993, Dahlab c. Suiça, 2001, Kurtulmus c. Turquia, 2006, SAS c. França, 1 de Julho de 2014 e Ebrahimian c. França, 26 de Novembro de 2015.