Foi ao ler o ensaio de Siegmund Hurwitz, Lilith The First Eve, ed. Daimon, 2009, que me ocorreu procurar nas histórias e hinos da Suméria uma imagem fundadora do Eterno Feminino, Inanna, a Grande – Mãe, ” Rainha do Céu e da Terra”, no cuidadoso estudo da autoria de Diane Wolkstein e Samuel Noah Kramer, ed. Harper and Row, 1983.
De Kramer eu tinha lido, quando jovem, um livro fascinante, que logo me fez olhar o mundo e as civilizações de forma bem diferente daquela que nos ensinavam no Liceu: History Begins at Sumer.
Afinal havia tanto mais para saber, para descobrir, para entender, nos vestígios deixados para memória, em frágeis tabuínhas de argila, numa escrita difícil, cuneiforme, ainda a ser decifrada. Afinal não era na Bíblia, no Antigo Testamento, embora pudesse haver pontos comuns, que estava o segredo da narrativa do Princípio dos Princípios. E Eva tinha tido antepassadas…
Quando escrevi o texto sobre Dizer o Mal, para a revista do CEIL, debrucei-me naturalmente sobre a figura de Eva, e a sua intervenção, no processo de aceder ao Conhecimento do Bem e do Mal, de que o fruto da Árvore Proibida ia ser portador. Esta Eva, no Génesis 1, era parte integrante do Adão andrógino, criado macho e fêmea, como nos é dito. A divisão em sexos opostos será já consequência do castigo que Jeová inflige, depois da tentação em que a Serpente, os faz cair. Remetendo para o que acontece no Banquete de Platão: também neste diálogo o ser andrógino é dividido ao meio, como castigopelo excesso de ambição, desafiadora dos deuses.
A Eva de Génesis 2 levanta outra questão: feita de uma parte de Adão, nem sequer da cabeça, como a Atena de Zeus, mas de uma costela (porquê costela? porque a cabeça apontaria para o domínio da Razão e a costela para o domínio do Coração? ) esta Eva deixa-se tentar pela Serpente, oferece o fruto da Árvore do Conhecimento do Bem e do Mal ao companheiro, e partilha com ele a culpa do mal que se tornou origem de todos os outros males com que a espécie humana foi a seguir perseguida. Estas Evas são intermediárias, é na Serpente que se encontra a Origem e a Causa Primeira: é a serpente que fala, que explica, e que incentiva a que não haja medo de correr o risco do castigo. Vemos depois o que acontece: o Par primordial expulso do Paraíso, a mulher condenada a parir em sofrimento e pouco depois o primeiro de todos os crimes, de Cain matando Abel e sendo expulso para longe, para fundar cidades, que todas terão a marca negra do sangue. Podemos dizer que até hoje…
Sem querer entrar aqui no arquétipo e simbolismo da Serpente, por um lado iniciadora, por outro causadora de todos os males, interessou-me antes procurar imagens do Feminino nos mitos mais arcaicos, nas descrições que as tabuínhas dos sumérios ainda permitem ler.
Não se poderá pôr de lado o Antigo Testamento: há muitos pontos comuns, lembro apenas, no caso do dilúvio descrito na epopeia de Gilgamesh o mesmo que se verifica no da Bíblia, e da Arca de Noé. Como sempre, apenas os Justos merecem salvação, e voltamos a uma espécie de Par Primordial, renovado pelo aviso de Jeová-Deus.
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Mas retomo a leitura de Wolkstein e Kramer, com as histórias de Inanna e seus Hinos da Suméria, com o sugestivo apelo das imagens que os acompanham.
Temos de início uma Árvore, a árvore Huluppu:
de um lado e de outro duas figuras, a de uma deusa e de um deus; a árvore tem 6 ramos (equivalentes aos 6 dias da criação do Génesis? ) e na sua raiz uma serpente dupla, também ela, com duas cabeças: condensando o arquétipo do Conhecimento, por um lado, e o da Vida, por outro? Os arquétipos têm esta característica, permitem o divagar…relacionando. Sentados, os deuses apontam ambos para serpente da árvore. Ali está a lição do mito. Eis o poema, na tradução inglesa:
In the first days, in the very first days,
In the first nights, in the very first nights,
In the first years, in the very first years,
In the first days when everything needed was brought into being,
etc,
etc.
até que se chega por fim à descrição da Árvore Primordial, também ela, como o primeiro dos primeiros dias, única na sua existência quando é plantada nas margens do Eufrates.
Estamos perante um hino que evoca o princípio dos tempos, o cântico da criação do mundo, com os primeiros deuses, a separação dos mundos, o céu que se distancia da terra, fixando-se o mundo superior e inferior, e um nome é dado ao Homem.
A árvore Huluppu era alimentada pelas águas do rio Eufrates, mas eram águas agitadas pelos Ventos do Sul, que faziam abanar os ramos, as raízes e a levaram por fim na corrente, até que surge uma mulher temente “da palavra” do Deus do Céu, An, e do Deus do Ar Enlil, (entendamos por aqui as forças indomáveis da natureza ), retirou a árvore do rio e disse:
I shall bring this tree to Uruk.
I shall plant this tree in my holy garden.
Conclui-se pelo seguimento que esta mulher já é Inanna:
Inanna cared for the tree with her hand.
She settled the earth around the tree with her foot.
She wondered:
how long will it be until I have a shining throne to sit upon?
How long will it be until I have a shining bed to lie upon?
A narrativa anuncia deste modo o nascimento de uma outra figura primordial, ligada à terra, em que plantou a Árvore (que salvou das águas do rio) e com a qual (da sua casca ) espera poder fazer o seu trono, de onde reinar, e a sua cama, onde repousar.
Mas será necessário esperar um tempo: cinco anos, dez anos, até que a casca da árvore revelasse três importantes alterações:
Then a serpent who could not be charmed
Made its nest in the roots of the huluppu-tree.
The Anzu-bird set his young in the branches of the tree.
And the dark maid Lilith built her home in the trunk.
The young woman who loved to laugh wept.
How Inanna wept!
(Yet they would not leave her tree.)
Aqui temos Inanna, Primeira das primeiras, que devolveu a vida à Árvore sagrada, a lamentar-se pelo que sucedeu agora, que aguardava poder ter o seu trono e a sua cama, no seu jardim sagrado : uma entidade oriunda das trevas, Lilith, com uma serpente e um pássaro ocupam a árvore sem que ela possa fazer nada para que saiam.
O hino da criação primordial parece que evoca um regresso a um abismo que não tinha sido ainda descrito na sua totalidade. Afinal o que teriam feito os deuses? Por que não intervinham, nem agora que a deusa, a Grande-Mãe, pedia ajuda? Não era a ela que a Árvore devia a sua existência?
Surge então na narrativa Gilgamesh, que será o herói de uma outra epopeia, com o seu nome, descrito como “irmão” de Inanna. Ela pede-lhe ajuda.
Gilgamesh agora já referido como o herói de Uruk, presta-lhe ajuda. Arma-se, como cavaleiro que é, ergue o seu poderoso machado de bronze e entra no “jardim sagrado” de Inanna, onde a Árvore se encontra plantada.
Gilgamesh mata a serpente que não podia ser destruída, o pássaro-Anzu foge com as crias para as montanhas, e Lilith destruiu a sua casa no tronco e fugiu para os lugares selvagens, desabitados.
Gilgamesh soltou então as raízes da Árvore-huluppu,
e os filhos da cidade, que o acompanhavam, cortaram-lhe os ramos.
From the trunk of the tree he carved a throne for his holy sister.
From the trunk of the tree Gilgamesh carved a bed for Inanna.
From the roots of the tree she fashioned a pukku for her brother.
From the crown of the tree Inanna fashioned a mikku for Gilgamesh,
the hero of Uruk.
Assim termina o primeiro texto alusivo à criação do mundo, seus deuses, e a referência à Árvore da Vida e ao par Inanna-Gilgamesh, irmãos que se completam, ele porque a ajuda, ela porque reinará agora a seu lado, com as vestes que lhe teceu.
Neste par vemos definidas as suas funções específicas: ele guerreiro, ela tecelã (da vida).
Um estudioso deveria ler a partir deste momento a epopeia de Gilgamesh para entender o seu percurso mítico, e a sua descrição como fundador de cidades – já aqui surge a referência à cidade, Uruk, e aos seus companheiros. Em contraponto temos o Jardim Sagrado de Inanna, uma figuração de um estado anterior da civilização, como o do Éden da Bíblia, um estado em que a agricultura e o trabalho da terra ainda predominam.
Preciosas para o leitor, mais até do que os hinos, que nos capítulos seguintes evoluem para as bodas sagradas de Inanna, o par que a deusa aceita, o que recusa, e a descida ao mundo interior onde a Sabedoria da fertilidade ( material e espiritual) se adquire, – preciosas, dizia eu, são as notas finais de Diane Wolkstein, que situa com grande erudição em contexto arqueológico, mítico e religioso as várias narrativas que são, para um leigo, confusas de entender.
Por outro lado, entre os vários fragmentos recolhidos, alguns evocam directamente imagens e situações que conheceremos da leitura da Bíblia, e do Génesis.
Surge uma macieira a que Inanna se encosta, já depois de ter colocado na cabeça a sua “coroa” de rainha das estepes. Vai em direcção do rebanho e do pastor, encosta-se à macieira, e agora devolvo a palavra ao relator do hino, nas tabuínhas eróticas cujas imagens não poderiam ser nem mais directas nem mais significativas, quanto ao que era, no chamado berço sumério das civilizações, o culto da Grande-Mãe, e seu ritual de cósmico e fértil coito (p.11, Inanna and the God of Wisdom):
She leaned back against the apple tree, her vulva was wondrous
to behold.
Rejoicing at her wondrous vulva, the young woman Inanna applauded
herself.
De notar que até aqui indicada como deusa, se define pela primeira vez como “jovem mulher”, regojizando-se do corpo amadurecido que descobre. Fértil, será fertilizada e fertilizará os deuses e o reino a que pertencem.
Antes das núpcias com Dumuzi visitará o Deus da Sabedoria, no reino das águas profundas. E a seguir toda a terra fértil será deles, desde a Suméria à Akádia. Dumuzi assume-se como pastor e como lavrador, domina rebanhos e terra fértil, é o par cósmico, masculino, de uma terra feminina domada:
As the farmer, let him make the fields fertile,
As the shepherd, let him make the sheepfolds multiply,
Under his reign let there be vegetation,
Under his reign let there be rich grain.
E segue o hino numa espécie de nova recitação dos dias da criação, seres vegetais e animais, os da terra e os do céu, de novo as águas que correm, do Tigre e do Eufrates, num cântico de louvor à “Senhora da Vegetação”:
May the Lady of Vegetation pile the grain in heaps and mounds.
E acabando:
O my Queen of Heaven and Earth,
Queen of all the universe,
May he (referência a Dumuzi, o esposo) enjoy long days in the sweetness of your holy loins.
E finalmente o que já se espera da decisão cantada em versos anteriores que me dispenso de citar:
He opened wide his arms to the holy priestess of heaven.
Inanna spoke:
My beloved, the delight of my eyes, met me.
We rejoiced together.
He took his pleasure of me.
He brought me into his house.
….
Nas estrofes seguintes, narrando o prazer que ambos oferecem um ao outro (alude-se a cinquenta vezes…) surge de novo a imagem conhecida das macieiras e do jardim em que florescem. Mas no puro prazer, ainda sem pecado nem dôr.
A dôr virá depois, com a descida de Inanna ao Grande mundo Inferior: The Great Below.
Aqui, de portão em portão, até ao sétimo, será despojada de todas as insígnias de realeza que a distinguem, mas não a protegem num mundo que não lhe era destinado e ambicionou conhecer, e por isso será finalmente morta. Na sua ausência, Dumuzi, o consorte, embrenha-se por completo e com grande egoísmo na sua nova posição de rei, até que chega o momento em que, por acordo de Inanna com o mundo inferior, Dumuzi irá substituí-la, sofrendo ele o martírio que se pode dizer dos infernos.
O que leva Inanna a querer descer ao abismo inferior, abandonando ” a terra e o céu” , o sagrado ofício de sacerdotiza, o templo de Uruk, e vai apenas levando como protecção a divina coroa, as jóias, as vestes que a cobrem. De tudo, descida a descida, será despojada, porque as leis do mundo inferior não podem ser desobedecidas.
A razão deste impulso que a leva é dita logo na primeira resposta: ia por causa da sua irmã mais velha, Ereshkigal. Esta era a rainha do mundo inferior, e procurar vê-la era um risco sério, ter de morrer, para isso.
O mundo inferior era uma região seca, escura, ignota, e não tinha sido escolhida por esta sua rainha. Aqui o mito reconduz-nos ao seu início: o da árvore Huluppu, que Inanna quer para si, e com a ajuda de Gilgamesh consegue que sejam expulsos os seres que a tinham ocupado: um deles Lilith, que vai “para longe” para uma região obscura e deserta, é a irmã renegada de Inanna, seu negro alter-ego, agora redescoberto. Se a deusa do mundo natural superior é luminosa, a sua contrapartida é esta deusa das trevas, que agora vai conhecer, perdendo a vida. É, na narrativa mítica, a sua contraparte: nenhum laço afectuoso a prende, não há compaixão na sua alma, nada, a não ser um apetite sexual feroz e com a morte no horizonte, depois de ter perdido o marido. O seu reino é da desesperada solidão.
Fica enraivecida ao saber que a sua irmã, deusa fértil, feliz, realizada, ali a quer visitar.
Inanna vai atravessando os sete portões e a cada pergunta que faz obtém como resposta:
Quiet, Inanna, the ways of the underworld are perfect.
They may not be questioned.
Até que nua, despojada de tudo o que a distinguia e protegia, entra curvada na sala do trono:
Ereshkigal rose from her throne.
Inanna started toward the throne.
The Anunna, the judges of the underworld, surrounded her.
They passed judgment against her.
Then Ereshkigal fastened on Inanna the eye of death.
She spoke against her the word of wrath.
She uttered against her the cry of guilt.
She struck her.
Inanna was turned into a corpse,
A piece of rotting meat,
And was hung from a hook on the wall.
Iniciação e morte.
Num ambiente de intensa dramaticidade, que bem evoca uma tragédia grega.
Mas Inanna faz falta, a sua ausência leva a que se implore aos deuses o seu regresso, a todo o custo. É Enki, no seu templo, que corresponde ao apelo, mas terá de ser enviado para o mundo inferior alguém, em seu lugar, para que Inanna seja libertada pelos severos juízes.
Como já disse acima, será Dumuzi a assumir esse destino. Mas partilhado com outra irmã, metade do ano irá ele para o submundo, outra metade irá ela, cujo nome é Geshtinanna e só agora nos surge na narrativa, quando estamos quase a chegar ao fim. Quando esta fôr chamada será ele libertado, e assim por diante.
Inanna entrega Dumuzi “nas mãos do Eterno”, e entoa-se um cântico à deusa das trevas, seu outro eu, Ereshkigal:
Holy Ereshkigal! Great is your renown !
Holy Ereshkigal! I sing your praises!
Lilith retoma o seu lugar no panteão das glórias devidas, e pelo meio fica Dumuzi que fora pastor e lavrador muito amado, enquanto Inanna, a Terra-Mãe, precisou dele.
Nota ao Leitor
Aqui apenas faço a recomendação de uma leitura mais, que nos devolve memória, história e curiosidade sobre o que fomos, e por enquanto somos: criaturas em busca do seu destino, nas raízes de uma árvore mal plantada. De que torrente e pela mão de que deusas, Lilith ou Inanna poderemos ser salvos, e preservados na terra?
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