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Terça-feira, Dezembro 24, 2024

A linha vermelha da imoralidade

Paulo Casaca, em Bruxelas
Paulo Casaca, em Bruxelas
Foi deputado no Parlamento Europeu de 1999 a 2009, na Assembleia da República em 1992-1993 e na Assembleia Regional dos Açores em 1990-1991. Foi professor convidado no ISEG 1995-1996, bem como no ISCAL. É autor de alguns livros em economia e relações internacionais.

O mundo foi confrontado esta semana com imagens de crianças sírias moribundas após bombardeamentos pela força aérea das autoridades do seu país. Há um século que as forças alemãs abriram esse tétrico capítulo da história da humanidade. As armas químicas voltaram a ser usadas na segunda guerra, mas aqui já como meio de aniquilamento industrial de populações civis, e voltaram depois disso a ser usadas em esporádicas acções terroristas, na primeira guerra do Golfo e, já depois dela, como arma de limpeza étnica no Iraque.

Linha vermelha

Voltaram ao primeiro plano há cinco anos atrás, como instrumento de limpeza étnica no teatro de guerra da Síria. Em Agosto de 2012, o Presidente Obama proclamou publicamente que os bombardeamentos químicos de civis pelo regime de Assad eram uma linha vermelha que, se ultrapassada, levariam a uma intervenção militar americana.

Aparentemente o presidente norte-americano nunca teve qualquer intenção de levar a sério o aviso – desmentiu mesmo um ano depois que alguma vez tivesse feito o aviso – e a linha vermelha transformou-se na verdade numa passadeira vermelha para o prosseguimento desses bombardeamentos químicos como para a invasão do país pelos guardas revolucionários iranianos à frente de um contingente de milícias por si controladas oriundas de todos os países vizinhos, mais tarde apoiada por forças russas.

Aquilo que tinha começado como uma rebelião pacífica, democrática e popular no princípio de 2011 foi reprimido a ferro e fogo com a prisão, tortura e assassínio de dezenas de milhares de pessoas de todas as etnias e confissões e transformou-se numa guerra civil dominada por correntes jihadistas em vários lados do conflito.

Síria, matança indiscriminada de civis

A matança indiscriminada de civis intensificou-se e levou a que a Síria se tornasse na principal fonte mundial de população fugida da guerra, com centenas de milhares de mortos e milhões de feridos, sobretudo entre a população civil, com o claro objectivo de realizar uma limpeza étnica de enormes proporções.

O teatro de guerra sírio tornou-se no prolongamento do teatro de guerra iraquiano e expandiu-se para toda a região, com outras frentes no Iémen, no Líbano, Afeganistão e mesmo Paquistão, todas elas animadas pela teocracia iraniana.

A ideia de que o regime sírio está porventura a exceder-se mas em qualquer caso ‘a combater o terrorismo’ é absolutamente peregrina e resulta de uma enorme campanha de desinformação.

A Síria dos Assad foi durante décadas a principal capital do terrorismo internacional, quer em ligação com grupos antijudaicos, grupos da órbita soviética ou islamistas de várias tonalidades. Num passado mais recente, foi a rectaguarda da generalidade dos grupos armados de oposição ao poder no Iraque, e nomeadamente a secção da Al-Qaeda da ‘Mesopotâmia’.

O regime de Assad – como de resto os seus patronos iranianos – age com um total desprezo pelo valor da vida humana que nada diferencia da actuação dos grupos jihadistas activos no terreno como o Califado de Raqqa e Mossul.

Administração Obama

Nada disto naturalmente escapou à Administração Obama. De acordo com declarações ‘off the record’ do ‘conselheiro para as comunicações estratégicas de segurança’ Ben Rhodes publicadas por David Samuels a 5 de Maio do ano passado no magazine do NYT: o ‘mundo árabe sunita colapsou’.

É esta visão imoral, idiota e cínica que levou o Presidente americano a sancionar pela inacção e pelo silêncio a utilização sistemática de armamento químico para realizar a limpeza étnica de regiões inteiras, gaseando a população civil e trazendo aos écrans de televisão as imagens das crianças moribundas após os bombardeamentos químicos.

O que a administração de Obama denominava de ‘colapso do mundo árabe sunita’ é na verdade muito mais do que isso, é uma guerra religiosa que só encontra paralelo naquelas que devastaram a Europa durante séculos e que coloca naturalmente na linha da frente a Turquia e o Paquistão, Estados islâmicos e não-árabes que são vizinhos do Irão.

É uma guerra que só os tolos pensam que pode alguma vez manter-se fechada em qualquer espaço. A chamada ‘crise dos refugiados’ – capaz aparentemente de pôr fim à Europa tal como a conhecemos – é apenas uma consequência secundária do enorme drama que se desenrola nas fronteiras europeias e a onda terrorista a que assistimos, é uma pequena amostra do que nos pode vir fronteiras adentro.

O ocidente atravessou a linha vermelha da imoralidade ao silenciar e normalizar a limpeza étnica por bombardeamento químico e só por completa cegueira pode pensar que as consequências desse acto não lhe vão entrar dentro de portas.

Crédito: Ammar Abdullah/Reuters

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