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Domingo, Novembro 3, 2024

O Livro Em Branco II

José Carlos S. de Almeida
José Carlos S. de Almeida
Professor de Filosofia do ensino secundário. Licenciado em Filosofia e em Direito.

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Tornando à história. Quando Hareth iben Axraf acordar terá como decidido de nesse dia não visitar Zuahaib aç-Caif, condutor de caravanas e adepto feroz de Maomé, que lhe concedia carícias benevolentes nos banhos, local insuspeito onde os homens se lavam e se perfumam e riem no meio das brincadeiras e dos jogos inventados a propósito. Mas disto não se dirá mais nada, pois sendo o delicado Zuahaib aç-Caif mais avançado na idade, mãos finas ou afinadas, que o trabalho dos corpos exige um ourives barroco e muitas noites em claro, melhor o contaria, embora correndo nós o risco, ou o perigo, se perigo for, de ele não vos contar a verdade toda como eu aqui vos conto.

Estando já crescido o dia quando Hareth iben Axraf despertou, depressa foi este buscar o livro em branco, o presente de Séfora, e estando em maré de escrever, por ter coisa de lembrar que já nem se lembrava e ser a escrita tarefa moça ou luarenta, logo se dispôs a escrevê-lo. E por ser assim, assim fez. E sentou-se Hareth iben Axraf perto da sua janela, talvez pensando que estaria mais perto de Séfora, dos seus olhos, e fosse deste modo a escrita mais fiel e comovida como a sua lembrança.

E por ser assim, assim fez.

E eu vos relato agora o espanto tamanho do jovem, quando começou a escrever naquele livro em branco, oferta radiosa. Queria descrever nesse livro toda a sua memória dos seus dias, a memória de Séfora, de como a viu ágil pela primeira vez numa praça de Yathrib, ensinando a uns meninos, olhos curiosos que espreitavam alguns jogos infantis, feitos com riscos e sinais esotéricos que traçava no chão e logo apagava, aprendendo os meninos a ler na areia o bailado das estrelas e o significado das diversas formas das nuvens, pois tem mais tento aprender o que manda o céu que o que é mandado na terra, mas isso ainda hoje ninguém percebeu.

HarethComo atrás digo, Hareth iben Axraf queria escrever sobre Séfora, o seu andar manso e pequenino, como quem está sempre longe e é demorado, escrever nesse livro de páginas provocantemente brancas, lugar onde o branco chama, tudo o que se recordava de Séfora e Séfora recordava, trabalho de memória que esquece e agarra os dias para que não fujam mais, não aconteça encontrá-los mais tarde muito estranhos.

Queria o rapaz tudo isso, feito de vontades escondidas, só que tudo o que escrevia no livro em branco se apagava pouco tempo depois de ser escrito, por obra mágica, que Hareth iben Axraf desconhecia, coisa nunca vista, talvez haja um rio naquele livro que lava as palavras deixando tudo emudecido em volta, talvez não devesse macular o que é puro e diáfano, talvez os riscos que traçava se escondam por tão escondidos e tolhidos estarem onde estavam.

Talvez isso e outras razões que o olhar inexplicável de Séfora poderia explicar, mas nada se deverá perguntar, antes ficar contente com tudo o que vai acontecendo. E prosseguirá Hareth iben Axraf essa estranha tarefa, escrita durante muitos dias, sempre à janela sem sequer sair para ver Séfora, não fosse esta um dia colher as histórias daquele livro a meio, se é que ela as conseguirá ler pois será coisa dificultosa decifrar o branco no branco, restos de lembrança e outros retratos que Hareth iben Axraf risca e não risca, mas de certo nunca apagará, e até sabe-se lá se não são desde logo apagados definitivamente quando escritos, nascem e morrem inglórios, antes não escrevesse mas os segredasse pelo cabelo de Séfora, missangas que se espalham, como se fossem histórias em que ninguém acredita por só acontecerem aos outros.

E por serem os riscos logo apagados, não estará já o livro todo escrito e seja defeito do escritor que não vê a clareza que ofusca, pensa Hareth iben Axraf enquanto escrevia coisas belas e claras que se juntavam e se perdiam afogadas na claridade das folhas do livro. E porque são coisas demasiado claras é que não se vêem, cogitava o rapaz, quando parava a meio daquela tarefa invisível, parece coisa de bruxaria, estar assim a escrever noite e dia, sem nada ver escrito, eram as palavras engolidas e tragadas, coisas do demónio ou do amor, é o mesmo, se assim contrariar a Natureza e as suas leis, crime por ser soberbo e poder pensar-se que o que está escrito os homens nunca poderão ver, mas isso é a Lei, isso é o Livro e Hareth iben Axraf é ainda rapaz moço e descuidado sem vocação vidente.

Pensamos nós.

Mas faltaria ao meu compromisso de contar os acontecimentos como aconteceram sem nada acrescentar à verdade, pois isso foi o combinado, se não vos avisasse que entretanto abalou Hareth iben Axraf para fora de Yathrib, deixando completo o livro, terminara a sua tarefa, ao que parecia, se assim se pode dizer, pois partiu de súbito com Zuahaib aç-Caif, condutor de caravanas e adepto feroz de Maomé, o Profeta, que lê o futuro e por isso, talvez ele possa ler o livro e revelar as histórias de Hareth iben Axraf e Séfora, sua amiga de olhar inexplicável.

Aviso-vos, mas ficou Séfora sem ser avisada que o seu amigo largara para o deserto, por uns tempos, para ver mais de perto o Hedjaz, pois quem escreve deve ter um saber de experiência feito, como dirá um poeta, mui viajado por vontade apaixonada e talento aguerrido, muito engenho, que Hareth iben Axraf nunca encontrará nos banhos nem em histórias que lhe contem.

É que foi Hareth iben Axraf visitado no meio destes dias do livro em branco por Zuahaib aç-Caif que lhe propôs a viagem, guerra santa e de prazeres, pelas ondas do Hedjaz tão que seriam tão parecidas com searas de trigo se esta areia fosse da razão de o dar. Terei que interromper as minhas histórias, lamentou-se o amigo do homem,

Mas o que é que escreves, perguntou Zuahaib aç-Caif admirado, tentando ler o que era sumamente branco. É uma viagem diferente, respondeu Hareth misterioso e divertido e mais nada disseram e assim ficaram em silêncio porque são amigos de olhar o mar e as dunas do deserto sem nada dizerem, cativos, entendidos.

Mas, pensou Hareth iben Axraf, que pena era a de não poder escrever durante aqueles dias naquele livro, agora que iria descrever a emoção se Séfora visitando pela primeira vez a sua humilde casa. Era o entusiasmo da tarefa nova, no livro enfeitiçado por Séfora que nunca explicou o seu olhar nem lhe explicará aquelas páginas brancas por brancas serem ou de traços invisíveis, saiba o futuro que o presente ainda está a ser escrito, e por essa razão pode até Séfora nem saber a magia daquela prenda.

Mas o seu amigo disse-lhe que o esperava lá fora e deixou-o em silêncio no quarto com o livro, estranho enamoramento. Olhou Hareth iben Axraf para a figura que se afastava e apenas reparou que as suas sandálias de couro eram novas e que não saía à rua há mais de duas semanas, que será de Séfora, há mais de duas semanas, sabor de saudade grande.

Era Janeiro no início, ano segundo da Hégira, quando foram com os outros, também fiéis ao deserto e à Palavra, discípulos dum Deus que escreve e que o homem, por dever por Ele ordenado e no seu acanhamento original, tenta imitar.

E lá foram todos para tudo preparados pois logo que se puseram em ordem de caminhar sabiam que apenas podiam contar com Ele e com o seu profeta e soldado e com um desejo de regressar salvo, que esta guerra pode ser santa, se é que não dizem isso de todas, mas há muito boa gente que não está ciente disso com fervor e pensa nos que deixaram para trás, como Herath iben Axraf pensa na sua Séfora e no livro em branco, livro incompleto ou já completo, não sabe ele. Por causa disto que atrás digo, ficamos nós por Yathrib, é mais seguro e deste modo poderemos contar depois tudo o que se passou se sobrar alguém para ouvir.

Ficou assim Séfora em Yathrib sem ser avisada da partida de Hareth iben Axraf, há mais de duas semanas que não o vê, que será dele há mais de duas semanas, sabor de saudade grande. Por estar assim em cuidados, caminhou Séfora durante longas noites pelo seu quarto, distância incalculável que se perdia pelas horas, tentando escutar a sua correria pela rua, Será que é ele, mas era apenas Caab Sufiane que não partira com os outros por ter religião firmada em Jerusalém, filho de outra Palavra, mas irmão de todos por razões comerciais.

Por vias desta demora assaz grande, resolveu Séfora ir a casa de Hareth iben Axraf saber notícias, pois podia ter caído à cama com algum mal e precisar de remédio que estivesse ao seu alcance.

Não conhecia a casa de Hareth, apesar de este, em várias alturas, a ter convidado para lhe mostrar algumas sedas e caxemiras que Zuahaib aç-Caif trazia das suas viagens. Entrou calmamente, como se reconhecesse aquela casa, entrou no quarto, era também o seu mundo, sentia-o estranhamente como se lá habitasse desde sempre, no seu corpo do avesso, pois não entrara também o jovem no seu corpo.

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Mas o seu amigo não se encontrava ali, Onde estará ele, perguntou com os olhos a correr pelas paredes, porque os olhos também correm e ficam por vezes longe, mas não tão longe que levasse agora Séfora até ao Hedjaz, até Badre, onde se encontra Hareth iben Axraf, cansado da cavalgada pelo deserto, dormitando às portas da cidade, sonhando por dentro do livro em branco, sonhando que Séfora finalmente o visitava.

Mas isso Séfora não sabe, apenas vê que o livro que oferecera se encontra repousado sobre o leito. Decide então aproximar-se dele, do livro em branco, que Hareth iben Axraf tentara escrever, sem nunca lhe dizer, guardando segredo, sorri. E desfolhando o livro por curiosidade insuspeita, logo repara que está cheio de riscos e palavras até meio, até meio cheio de arabescos, é essa a expressão correcta, restando, afinal, poucas páginas ainda em branco.

E então, o que Hareth iben Axraf escrevera, se é que escreveu por sua conta, é lido por Séfora que lê o que Hareth iben Axraf nunca lerá. Sorri por ver o que Hareth demoradamente, já tinham passado duas semanas, escrevera durante dias e noites a fio e por se ver ali retratada, efeito dum contentamento verdadeiro, sem maldade, que Séfora desconhecia.

E espanta-se por ver a descrição da sua própria visita à casa do seu amigo, com pormenores inesperados, mas certeiros. E seu olhar inexplicável seguiu aquelas histórias do livro até muito tarde, pois era entretanto noite e Séfora nem dera por isso.

Até que, finalmente, soube, lendo, quem poderia escrever aquilo, que Hareth iben Axraf partira para o Hedjaz com Zuahaib aç-Caif e outros seguidores de Maomé. E ali se encontrava tudo escrito, tremia a rapariga perante a revelação. E ali tomou conhecimento pelo livro, era noite avançada, estava escrito nesse livro, oferta de Séfora, que Hareth iben Axraf, ao fim da tarde, às portas de Badre, morria numa batalha sangrenta, iluminado pelo olhar bondoso de Zuahaib aç-Caif, a quem pedira que rezasse por ele e pela vitória de Alá e do seu Profeta e entregasse o livro em branco a Séfora, porque afinal lá nada escrevera, pois os riscos que no livro traçara, apagavam-se de seguida, como a sua vida naquele momento.

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