Subitamente, no início deste ano de 2017, volta a ter que se falar da UBER (ainda que muito menos do que aquilo que se deveria, é certo).
Por um lado, o Center for Investigative Reporting revelou há dias que, não obstante as declarações em contrário produzidas pela UBER, esta plataforma não apenas armazena, gere e utiliza, sem qualquer controle efectivo, os dados pessoais dos seus clientes, como tem um denominado serviço de protecção de dados que permite à empresa e aos quadros desse serviço seguirem o rasto de quem entendem, desde uma ex-namorada a uma personalidade pública, passando por um dirigente político ou sindical, ou simplesmente um inimigo pessoal, com todos os riscos de invasão da privacidade, espionagem, chantagem e hacking (usurpação de dados pessoais) daí decorrentes, como aliás denunciou recentemente o Electronic Privacy Information Center.
Perseguição e devassa
Já em 2014 a Buzzfeed tinha denunciado a perseguição e devassa da vida e actividade de um dos seus jornalistas por via de um god mode (um “modo Deus” informático, que está em toda a parte, a todo o momento, e que tudo espia).
Perante o fogo destas denúncias, a UBER, não podendo deixar de reconhecer cerca de uma dezena de casos de acesso indevido aos dados pessoais de clientes, anunciou supostas “medidas internas”, alegadamente destinadas a evitar a repetição dessas situações.
Mas as revelações feitas mais recentemente (no final de 2016) por um ex-funcionário, de nome Ward Spangenberg, da UBER – mais precisamente do seu serviço de segurança de dados, e que accionou judicialmente a empresa pelo assédio moral retaliatório que aquela lhe moveu em represália pelas denúncias por ele feitas – mostraram que não há mesmo qualquer controle real efectivo ou segurança na gestão desses mesmos dados, e que só na empresa americana existem milhares e milhares de funcionários com possibilidade de localizar e acompanhar em tempo real os cidadãos utilizadores do serviço UBER.
Esta questão ainda não parece ter preocupado praticamente ninguém entre nós, incluindo a própria Comissão Nacional de Protecção de Dados (que, todavia, parece muito preocupada, por exemplo, com o facto de que a Autoridade para as Condições do Trabalho-ACT possa aceder aos dados das remunerações declaradas e efectivamente pagas pelas entidades empregadoras a cada um dos seus trabalhadores…).
Mas aquilo que de mais recente vem de lá de fora só confirma o que já referíramos no nosso anterior artigo de 12/10/2016 (“A UBER: um lobo com pele de cordeiro”). Designadamente que “se a UBER consegue ter uma maior eficácia na definição de trajectos das suas viaturas até aos clientes e destes até ao respectivo destino, é unicamente porque centraliza, gere e utiliza os dados da localização dos mesmos clientes, sem que haja qualquer protecção do tratamento dos mesmos dados”. Propiciando aliás e simultaneamente negócios de milhares de milhões – tal como já sucede hoje noutros países – com municípios e outras entidades gestoras de tráfego rodoviário.
Escravatura da UBER
Mas agora há uma outra parte da questão que desatou mesmo a bater-nos à porta: é que começaram os relatos das práticas de verdadeira escravatura da UBER em Portugal, ainda que (por enquanto) com as identidades das vítimas ocultadas devido aos receios de ameaças (como a de “se não estás contente, podes sair”) ou de represálias directas (como o despedimento puro e duro disfarçado de “a partir deste momento estás desconectado”).
São assim feitas denúncias muito claras de horários de 12, 14 e até 16 horas por dia, seis dias por semana, sem direito a férias, a subsídios de férias ou de Natal, ou de doença.
Fica a saber-se que os motoristas são contratados por intermédio de empresas ditas “parceiras” da UBER, quase sempre a recibos verdes. Que do total dos valores pagos pelos clientes a plataforma electrónica UBER embolsa, sem qualquer risco ou encargo, 25%, a empresa “parceira” 40% e o motorista 35%, dos quais ainda tem de retirar os descontos que faz para a Segurança Social e para o fisco, para além de ter de pagar do seu bolso o valor de qualquer dano sofrido pela viatura ou, simplesmente, o custo da activação da franquia do respectivo seguro.
Com a UBER torna-se assim e cada vez mais possível trabalhar a taxas horárias de 1,40€ brutos e, contra todas as regras de segurança, as tais 12, 14 ou 16 horas por dia! Cujo aumento é, aliás, cada vez mais impulsionado pela ausência de efectiva fiscalização das condições de trabalho destes pretensos “prestadores de serviços”, pelo desemprego e consequente aumento de motoristas a operar (em 6 meses do ano passado a UBER em Portugal terá passado de 1.000 para, segundo o seu próprio Director-Geral Rui Pedro, 2.500!) e, logo, pela quebra do número de clientes por cada um.
Some-se a tudo isto a circunstância de que cada motorista é avaliado por tudo aquilo que faz, desde a quilometragem (que, se for considerada excessiva, significa desconto na retribuição, a título do combustível gasto) às paragens, passando, por exemplo, pela velocidade.
Pretexto enviesado
Para a UBER, quanto maior for o número de empresas “parceiras” e de motoristas, melhor, pois a sua única preocupação é que o cliente tenha à sua disposição uma viatura o mais rápido possível e que ela possa embolsar os seus 25% “limpos”. O Governo, invocando que se trata de um serviço privado, e não público (como o dos táxis), recusa-se a estabelecer qualquer contingentação do número de viaturas a operar em cada cidade do nosso país.
Mas, mais, apesar de todos os termos da prestação de actividade (desde logo a definição das tarefas e o poder de bloqueamento da aplicação) serem definidos pela UBER, esta, em Portugal, tem conseguido eximir-se à aplicação da legislação do trabalho sob o conhecido mas absolutamente enviesado pretexto de que não é uma empresa de transportes mas sim uma mera plataforma de contacto entre clientes e “parceiros prestadores de serviços”.
E a nossa ACT – conforme aliás o declarou expressamente, em Agosto do ano passado, o seu Sub-Inspector-Geral António Robalo dos Santos, ainda não percebeu – e ainda o anda a estudar porque não seria claro… “o tipo de relação que existe entre o condutor que faz estes serviços para a UBER e a própria plataforma” (sic).
Porém, em Outubro último, um Tribunal do Trabalho, claro que não português mas inglês, proferiu uma sentença considerando, precisamente porque quem define todos os termos da prestação de actividade é a UBER, que os motoristas ao seu serviço são seus trabalhadores e não prestadores de serviços “independentes”.
Por outro lado, e por todo o tipo de abusos da UBER como os acima descritos (e também por práticas anti-concorrenciais para, depois de conquistado o mercado, impor as condições mais gravosas não apenas para os seus motoristas mas também para os próprios clientes) já estalaram protestos, e alguns bem violentos, de condutores UBER por todo o Mundo, do Brasil e México aos Estados Unidos e Grã-Bretanha, passando pela Espanha e pela Itália, por exemplo. Protestos esses que, mais tarde ou mais cedo, vão também chegar, é mais que certo, ao nosso País.
E no dia em que os condutores da UBER criarem a sua própria associação sindical e compreenderem e levarem à prática que é pela sua união que poderão lutar consequentemente contra o seu actual estatuto de autênticos escravos, as coisas irão seguramente (começar a) mudar!…