Diário
Director

Independente
João de Sousa

Sexta-feira, Novembro 1, 2024

Lúcifer Morningstar, o anjo mais humano

Carolina Maria Ruy, em São Paulo
Carolina Maria Ruy, em São Paulo
Pesquisadora, coordenadora do Centro de Memória Sindical e jornalista do site Radio Peão Brasil. Escreveu o livro "O mundo do trabalho no cinema", editou o livro de fotos "Arte de Rua" e, em 2017, a revista sobre os 100 anos da Greve Geral de 1917

Lúcifer Morningstar está mais próximo de sua identidade de anjo do que John Milton que rompeu com sua natureza angelical. Não um anjo etéreo como o do filme Asas do Desejo (1987), de Wim Wenders, mas um anjo humano e contestador.

Assisti a série Lúcifer surpresa e intrigada com a personalidade e a moral do diabo interpretado pelo ator britânico Tom Ellis. Não que a série, que mistura ação e comédia, proponha grandes reflexões. Mas imaginava, antes de assistir, que o humor e a aventura dar-se-iam com base na maldade e nos poderes que se esperam do demônio.

Não é o que acontece. O caráter do protagonista contrastou com a minha expectativa. E esta aparente incoerência provocou em mim uma reflexão profunda e inusitada frente à proposta da série, que não ambiciona ir além de seu posto de entretenimento.


Veja aqui o trailer da 1ª temporada da série:


Qual é a ideia de diabo defendida através da figura do empresário e auxiliar da polícia Lúcifer Morningstar? Ele em nada lembra John Milton, o diabo representado por Al Pacino em O Advogado do Diabo (1997). Aquele sim condiz com a figura satânica que conhecemos. Sua missão na Terra é viabilizar o horror, instigar o que há de pior nas pessoas e valorizar os piores. Dono da maior firma de advocacia de Nova York, Milton é ardiloso, afiado, manipulador, frio e impermeável. É um diabo assumido que não mantém nenhum traço do anjo que já foi.

Já o Lúcifer de Tom Ellis é um diabo aberto a mudanças. Ele deixa claro que governar o inferno é uma condenação, não uma escolha, e renuncia a este posto para viver com os seres humanos, em Los Angeles, Califórnia. Rebelde inato, Lúcifer lembra o diabo quando se entrega (com frequência) aos prazeres carnais e quando consegue extrair de qualquer pessoa seus verdadeiros desejos. Mas seu traço mais importante e que melhor o define é que ele questiona sua condição e busca evoluir. Mais do que isso, ele quer aprender e ser aceito pelas pessoas.

Lúcifer Morningstar está mais próximo de sua identidade de anjo do que John Milton que rompeu com sua natureza angelical. Não um anjo etéreo como o do filme Asas do Desejo (1987), de Wim Wenders, mas um anjo humano e contestador.

Neste sentido ele expressa uma ideia de diabo baseada na quebra de padrões e na transformação das estruturas, um pouco como o diabo imaginado por Mick Jagger e Keith Richards em Sympaty for the Devil, mas ainda mais contraditório.

A música dos Rolling Stones, faixa de abertura do álbum Beggars Banquet lançado no fatídico ano de 1968, encarna o espírito da revolução dos costumes que marcou a época, apresentando um diabo provocador e ativo na história da humanidade. Ela afirma que a divindade é uma criação humana (Assisti com alegria/Enquanto seus reis e rainhas/Lutaram por dez décadas/Pelos deuses que criaram) e expõe a falsa dicotomia entre o bem absoluto e o mal absoluto (Assim como todo policial é um criminoso/E todos os pecadores são santos/Assim como cara é coroa/Simplesmente me chame de Lúcifer/Porque preciso de alguma contenção). Além de ter uma letra politizada, seu lançamento em 1968 foi também um ato político de contestação e quebra de padrões.


E o vídeo legendado de Sympaty for the Devil:


Mas Morningstar é mais contraditório uma vez que busca compreender e assimilar o senso de justiça e de benevolência que sela as relações sociais. Ele não põe em dúvida a divindade, mas a renega em nome da convivência entre os mortais.

Os anjos e demônios criados pela série preferem a vida na Terra a governar o inferno ou mesmo à vida no paraíso celestial. Preferem os desafios terrestres à falta de contradições do além. Encontram, pasmem, no trabalho (e o trabalho realizador de Lúcifer nem de longe lembra o glamour do império do magnata John Milton, aqui ele dá o seu melhor quando é um funcionário da polícia, subordinado à uma hierarquia acima dele), a possibilidade de realização e de evolução.

Penso, desta forma, que por trás de todo aquele entretenimento, de toda aquela comédia e ação, com alta dose de romance, Lucífer é uma série humanista. Uma série provocadora, que coloca o ser humano mortal e material no centro do mundo.


Texto em português do Brasil


Receba regularmente a nossa newsletter

Contorne a censura subscrevendo a Newsletter do Jornal Tornado. Oferecemos-lhe ângulos de visão e análise que não encontrará disponíveis na imprensa mainstream.

 

Receba a nossa newsletter

Contorne o cinzentismo dominante subscrevendo a nossa Newsletter. Oferecemos-lhe ângulos de visão e análise que não encontrará disponíveis na imprensa mainstream.

- Publicidade -

Outros artigos

- Publicidade -

Últimas notícias

Mais lidos

- Publicidade -