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Segunda-feira, Novembro 4, 2024

Luís Filipe Lindley Cintra

Helena Pato
Helena Pato
Antifascistas da Resistência

(1925-1991)

Professor catedrático da Faculdade de Letras de Lisboa, houve nele uma confluência pouco vulgar de dedicação solitária ao estudo e à docência , e de disponibilidade para se solidarizar activamente com causas colectivas. A sua participação cívica na luta antifascista e na construção da Democracia teve início na crise académica de 1962 e só terminou com o seu desaparecimento. Foi um homem de grande carácter e afabilidade, um Mestre respeitado pelo seu saber e pela forma activa com que se empenhou na luta dos estudantes, em defesa de uma nova universidade, e por muitas outras intervenções cívicas. Lindley Cintra é incontestavelmente um nome de referência para o estudo e ensino da língua portuguesa.

Crise académica de 1962

Nasceu em Espariz (Tábua) a 5 de Março de 1925 e faleceu em Sesimbra a 18 de Agosto de 1991. Licenciado em Filologia Românica pela Faculdade de Letras de Lisboa, começou a leccionar nessa Faculdade em 1951, chegando a professor catedrático em 1962.

Em 1945, foi presidente da Associação Académica da Faculdade de Letras de Lisboa, o primeiro depois de um longo período de encerramento. Todavia, foi durante a crise académica de 1962 que, como ele próprio o disse, despertou para a intervenção política e moral, o que o levou a colocar-se, sempre, ao lado dos estudantes. Em 1969 chegou a ser agredido pela polícia (os chamados “gorilas”, que invadiram a Faculdade).

Fotos da crise académica de 1962

A crise académica de 1962, nas Universidades de Coimbra e de Lisboa, constituíu um dos principais abalos ao regime salazarista, a que o Governo respondeu de forma violenta

Fez parte da Comissão Nacional de Socorro aos Presos Políticos (desde 1969) e, em 1973, integrou a comissão nacional do III Congresso da Oposição Democrática, realizado em Aveiro. Nesse mesmo ano, foi candidato suplente pelo círculo de Lisboa, pela CDE, nas eleições legislativas. Foi um dos membros do grupo católico que esteve ligado ao aparecimento da revista O Tempo e o Modo; foi membro da Pragma e colaborou na elaboração e difusão do jornal clandestino Direito à Informação .

Depois de 25 de Abril

Integrou a Comissão Instaladora do Sindicatos dos Professores da Grande Lisboa e, acompanhou brigadas de alfabetização a algumas aldeias, como Vilar de Perdizes.

Criador do Departamento de Linguística Geral e Românica da FLUL e reformador do Centro de Estudos Filológicos (a partir de 1975 designado Centro de Linguística da Universidade de Lisboa), teve um papel determinante na orientação das carreiras de numerosos investigadores e docentes, que se afirmaram num vasto espaço de disciplinas humanísticas. Como investigador distinguiu-se principalmente nas áreas da literatura medieval, da linguística românica, da dialectologia e da geografia actual da língua portuguesa – vasta gama de interesses que ajudam a perceber o percurso de um linguista de formação tradicional que não deixou de estar atento à evolução da ciência e da sociedade.

Nas décadas de 70 e 80, dirigiu o Boletim de Filologia, do Centro de Estudos de Linguística da Universidade de Lisboa.

Admirado no restrito meio científico português da época e nalguns círculos internacionais, entre filólogos, linguistas e historiadores, distinguido pelos alunos desde os primeiros anos de docência pelas suas aulas exemplares, Luís Filipe Lindley Cintra tornou-se a partir de certa altura o professor mais conhecido e mais invocado da Universidade portuguesa. Houve nele uma confluência invulgar de dedicação solitária ao estudo e à ciência, de interesse genuíno por uma grande diversidade de pessoas e de vidas, e de disponibilidade para se solidarizar activamente com causas individuais e colectivas, de que encontrou a matriz na própria relação pedagógica[1].

Os seus trabalhos escritos e a sua acção didáctica originaram e alimentaram uma fase nova do estudo dos textos medievais, em especial de historiografia, criando paradigmas metodológicos que se revelaram fundamentais para a investigação histórica do mesmo período, e em diversos campos da filologia e da linguística constituíram uma contribuição inovadora, tanto pelos resultados das suas próprias análises e interpretações como pelo lançamento de projectos que motivaram noutras pessoas interesses idênticos e foram formando investigadores.

Dividindo a sua actividade pela Faculdade de Letras e pelo Centro de Linguística , desenvolveu com persistência uma notável acção de direcção, organização e estímulo, em muitos casos inaugurando campos de investigação que continuam a frutificar. O Centro, que foi obra sua, integrou ao longo de anos um número apreciável de investigadores e uma das melhores bibliotecas do país nas respectivas áreas de estudo, e foi editor de livros[2].

Obra publicada

Deixou vasta obra no domínio da Linguística e da Literatura Medieval mas também um trabalho de grande importância na área da historiografia: a edição crítica do texto da Crónica Geral de Espanha de 1344.

Colaborou no Atlas Lingüístico de la Península Ibérica e foi autor, conjuntamente com o professor brasileiro Celso Cunha, da Nova Gramática do Português Contemporâneo, publicada em 1984.

De entre outras obras, salientam-se: Alguns Casos de Diferenciação Lexical entre o Português e o Castelhano Literários dos Séculos XIV e XV (Florença, 1956), A Linguagem dos Foros de Castelo Rodrigo (Lisboa, 1959), Nova Proposta de Classificação dos Dialectos Galego-Portugueses (Lisboa, 1971), Sobre «Formas de Tratamento» na Língua Portuguesa (Lisboa, 1972) e Estudos de Literatura Portuguesa (Lisboa, 1983).

Em 1983 foi agraciado com o grau de Comendador da Ordem da Liberdade e em 1988 com o grau de Grã-Cruz da Ordem da Instrução Pública.

 

 

Concentração na cidade universitária de Lisboa durante a crise de 1962

 

Fotografia do Semanário Ecclesia, em que podem ver-se Ruy Belo e Lindley Cintra

 

Orador no 3º Congresso da Oposição Democrática, Abril de 1973. Foto de Sérgio Valente. 

 

[1] Na Faculdade de Letras, além da orientação de teses de licenciatura, doutoramento e mestrado, as suas aulas, que eram realmente lições, ficaram célebres. Poucos professores as souberam ali dar como ele. Todos os assuntos se tornavam claros, integrados os fenómenos nos seus contextos, relacionados os factos com lógica e inteligência, definidos os conceitos de maneira suficiente e sem aditamentos supérfluos. Era um ensino que não procurava a problematização e visava eliminar os motivos de interrogação. Mas o saber em que assentava fora de tal maneira reflectido a partir da análise rigorosa de dados e documentos que a segurança que pretendia transmitir aparecia legitimada e por isso convincente. Dali puderam muitos partir depois para novas hipóteses. No entanto, passados quarenta ou cinquenta anos, é possível recorrer ainda à erudição adquirida nas suas aulas, tão bem apresentada foi ela à memória e tão armada estava contra eventuais futuros desmentidos. Em história e gramática comparadas das línguas românicas, em língua, historiografia e história da literatura medievais e em dialectologia — as suas disciplinas de eleição —, ao edifício diligentemente expandido e no essencial completado pelos finais da década de 60, que expunha perante os alunos, sobrevieram desde então novidades a acrescentar, mas poucas foram as alterações de conceito que se impuseram.

Outro tipo de popularidade, agora transbordando largamente da sua Faculdade, veio juntar-se à do mestre respeitado pelo seu saber quando, em 1962, se empenhou de forma activa na luta dos estudantes em defesa de uma nova universidade, e daí em diante em diversas intervenções cívicas, até 1974.

Como disse José Mattoso, que o entrevistou em 1989, a revitalização e a renovação dos estudos de história medieval trouxeram a primeiro plano o valor decisivo da obra de Cintra como modelo de abordagem do documento escrito e de conjugação produtiva de saberes de áreas diversas»

[2] Enquanto linguista, não produziu as sínteses do seu vasto saber. Mas talvez seja possível depreender, dos seus escritos, dois grandes campos de investigação pessoal: as origens da língua portuguesa, campo em que se concentram os seus trabalhos sobre a Reconquista e o repovoamento do território peninsular, a história dos dialectos galegos e portugueses, a produção documental latina e portuguesa dos primeiros séculos nacionais, o aparecimento da literatura escrita em português e a literatura oral, manifestada mais tarde no romanceiro;

o espaço da língua portuguesa, definido historicamente como sendo constituído por toda a faixa ocidental da Península Ibérica (incluindo, portanto, o galego, cujos dialectos não hesitava em considerar como pertencendo ao mesmo sistema que o português, ainda que apoiasse, para o presente, a autonomia da norma linguística galega) e pelas ilhas atlânticas, pelo Brasil e os países africanos e asiáticos onde se fala o português e os crioulos de base portuguesa. Ou seja, um espaço geográfico definido como produto da expansão extra-europeia da língua nascida do latim vulgar do Noroeste peninsular. Esta definição conduzia, naturalmente, à valorização dos aspectos unitários: sobre a variedade inevitável de uma língua transcontinental, Cintra fazia pairar uma unidade fundamental que não excluía o galego, nem os crioulos. E muito menos o português do Brasil, como o demonstraram, na fase final da vida, a sua defesa de uma ortografia comum e a colaboração com Celso Cunha para escreverem a Nova Gramática do Português Contemporâneo (1984), uma gramática escrita para servir de normativa, simultaneamente, à língua usada por portugueses, brasileiros e africanos.

Cintra não foi um homem paradoxal, nem muito apreciador de ironias ou surpresas conceptuais. É por isso que têm sabor, e fazem falta ao seu retrato, algumas das suas afectividades mais arreigadas: não gostava de Camões e, se pudesse ser língua, preferia ser o castelhano»


Dados biográficos:

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