Entrevista a Luís Galvão Teles, co-realizador de “GELO”
Ultrapassada a crise que levou o cinema para o seu ano zero, é bom perceber que os nossos cineastas animam o panorama com a apresentação diversas novas propostas. Este “Gelo” de Luís Galvão Teles, criado em parceria com o filho Gonçalo, surpreende pela originalidade da história e por nos apresentar uma inesperada frescura – a palavra não poderia ser mais adequada ao caso, até porque lida com criogenia -, numa intrigante mistura de géneros embora assente na narrativa de uma jovem que foi concebida por um ADN de um cadáver congelado com mais vinte mil anos.
Esta premissa, no mínimo inesperada, parte da ideia original de Luís Diogo (Pecado Fatal), embora com um guião trabalhado por Gonçalo Galvão Teles e desenvolvido em trabalho de parceria entre ele e o pai Luís Galvão Teles.
O português Afonso Pimentel e a espanhola Ivana Baquero, em mais uma habitual co-produção da Fado Filmes com nuestros hermanos, são o par romântico que acaba por traçar um continum humano nesse misto de ficção científica e thriller romântico em que diferentes gerações passam os seus genes, mas também em que o conhecimento passa de pai para filho, ou mesmo netos. De resto, algo que é comum à vida da família Galvão Teles, como o realizador Luís descreve na entrevista ao TORNADO.
Escolhido para a abertura do Fantasporto, concorrendo mesmo para o prémio principal, “Gelo” foi igualmente seleccionado para participar na selecção oficial do festival Cinequest, em San Jose, na Califórnia.
É importante que as pessoas saibam que o filme existe, sublinha Luís em off já depois da nossa conversa telefónica. Deixando embora o lamento da falta de apoio que sentiu por parte da RTP e a não exibição do trailer no canal público.
É curiosa a forma como o filme interlaça a componente de ficção científica num corpo misterioso e imaginário. No fundo, algo que não estamos à espera quando vemos o filme…
De certa forma, essa componente estava já inserida no guião do Luís Diogo de uma forma detalhada, com descrições de todo o processo de criogenia, informações bastante técnicas desse processo. Nós deixámos um pouco, mas apenas de uma forma superficial apenas para as pessoas terem alguma informação. Mas não nos preocupámos muito com essa informação quase científica. O que é curioso é que o guião foi escrito antes do filme do Amenábar, “Abre los Ojos” (Abre os Olhos, 1997), que trata o mesmo tema. É curioso porque há algumas semelhanças, mas que são puramente acidentais, porque o guião já existia. Em vez das questões técnicas preocupámos-nos mais com as questões existenciais, sobretudo passionais, emocionais e humanas. Relacionadas com o processo da vida e o processo da morte, a ânsia da imortalidade, a realidade da mortalidade e as tentativas que existem em suspender a vida para reanimar as pessoas criogenizadas.
A escolha da espanhola Ivana Baquero é em cheio. Foi uma escolha difícil?
Não, foi o Cairo (D’Ursi), co-produtor espanhol com quem trabalho habitualmente que sugeriu a Ivana.
Uma actriz extraordinária, que parece que rouba a imagem à câmara. É assim desde que se mostrou no “Labirinto do Fauno” (2006, do Guillermo del Toro). Entretanto, ganhou imensos prémios e fez até um filme com o Kevin Costner nos Estados Unidos (A Nova Filha, 2009). E uma das razões pelas quais não pôde vir a Lisboa é porque está a acabar o curso de Direito, porque não quer ficar completamente dependente do cinema.
O Afonso Pimentel é também um actor que está a crescer muito. Foi fácil a ligação com a Ivana?
O Afonso acabou por se tornar num amigo. O que é muito importante nele é a sua força interior. Apesar de estar sempre a brincar, o trabalho de interiorizar a personagem é muito profundo. Por outro lado, é um actor que deseja muito o olhar dos outros para que vá limando as coisas, os pequenos detalhes. Algo que se percebe no jogo muito relevante que trava entre ele e a Ivana.
Este é também um filme de pais e de filhos, de gerações, feito por um pai e um filho. Sente que, de alguma forma, esta paixão pelo cinema na vida real do pai se tornou natural para o seu filho? Houve também alguma vontade do pai em passar esse testemunho?
Sim, no fundo é dar continuidade às coisas, como eu dei continuidade a outras coisas. Mas também a interrompe-las.
O caso do Gonçalo é muito curioso porque nos completamos em muitas coisas. Desde muito cedo que ele estava envolvido em fantasia, mais pelo lado materno, do lado do avô. De contar histórias e de ficcionar.
Isto numa família com formação jurídica e que não tinha uma formação artística que não fosse ouvir música, ler, ver artes, etc. Pelo menos não tinha o elemento prático. Eu abri um caminho novo. O Gonçalo já nasce num outro contexto.
Quando quis fazer cinema, fiquei contente apesar de lhe mostrar que não era um caminho fácil. Depois acabou por ir para os Estados Unidos estudar escrita de argumento. Com o lado de existir esta complementaridade de ter vivido uma época diferente da minha. De um lado a Nouvelle Vague, Buñuel, do outro lado uma cultura mais centrada nos anos 90 e com uma ligação mais forte aos EUA. Ele estudou argumento e eu realização, o que também se completa.
Como surgiu a ideia da co-realização com o Gonçalo? Pergunto porque me parece que tem algum eco com os pais e os filhos da história do filme. Ou será que uma mera coincidência?
Não é coincidência, mas também não foi nenhuma lógica de trabalho. Há uma lógica interna, mas não uma lógica externa. O processo da realização do filme é um processo complicado, como o são quase todos os filmes em Portugal. O argumento original tinha sido escrito pelo Luís Diogo.
A certa altura o Gonçalo fez um workshop de escrita de guião em que lhe deu a ler o guião. Eu gostei muito também. O processo foi avançando durante vários anos, com os problemas habituais com os financiamentos, problemas do ICA, crises, etc.
Quando finalmente veio o financiamento do ICA, metemo-nos ao trabalho, o Gonçalo no argumento e eu na realização, e começamos a preparar o filme. Entretanto, começamos, naturalmente, a cruzar o trabalho de um e de outro, em que eu trazia informações para a escrita do guião e ele para a preparação do filme. Até que, a certa altura, estávamos os dois a fazer a mesma coisa. O filme surgiu naturalmente a quatro mãos, ou como o Gonçalo costuma dizer, bicéfalo.