Não foi uma saída da prisão, mas uma reentrada no mundo. No mundo, literalmente: televisões em direto e primeiras páginas dos jornais. Um simbolismo extraordinário. Regressado da provação, Lula da Silva entra em palco com firmeza e de coração limpo. O que mais impressiona é a energia – vem para lutar, não para se reformar. Vem sem ressentimento, mas sabe também o que não pode voltar a acontecer.
A grandeza daquele momento fez-se de muitas iniquidades. Vem da história do golpe, da Presidenta destituída sem crime de responsabilidade, como se o regime fosse parlamentar e não presidencial. Vem da história da lava jato, operação judiciária que se revelou ser o instrumento e a oportunidade para criminalizar todo um partido e perseguir o seu líder histórico. Vem da história da singular condenação de corrupção por “factos indeterminados “ e da prisão em violação da Constituição. Vem da história da cassação dos direitos políticos, rasgando com petulância o direito internacional e a determinação do comité de direitos humanos das Nações Unidas para que o antigo presidente fosse candidato.
A emoção do instante é também o resultado da memória de violência e de humilhação destes últimos anos e em particular da disputa eleitoral. De um lado toda a direita unida, a moderada e a extremista, a que se juntou a agressividade da imprensa e a vergonhosa parcialidade do aparelho judiciário. Por detrás deles surgiu ainda a sombra do partido militar que, passo a passo, em “aproximações sucessivas”, ganhou rosto e visibilidade na vida pública. Do outro lado, rodeados de uma linguagem ameaçadora e belicista e com o antigo presidente preso, os dirigentes e militantes do partido lutaram e lutaram e lutaram para defender o seu património de governação e a ímpar transformação social conseguida na economia, na distribuição de riqueza, nas oportunidades educativas, na redução das desigualdades, na inclusão social, na afirmação do Brasil como uma nova e jovem voz na cena da política internacional. Agora que o seu líder histórico dá um pequeno passo para a liberdade, tudo muda e o País parece outro. Fico contente.
Para trás fica a decisão jurídica, rapidamente engolida pela dimensão política do acontecimento. No fundo, o Supremo Tribunal demorou uns dias a provar que sabe ler: “ninguém será considerado culpado até ao trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. Já não havia ângulo para olhar os inacreditáveis exercícios de pantomina hermenêutica constitucional, querendo convencer-nos de que o que está escrito não é, afinal, o que está escrito.
Por aqui, já que me perguntam, o tom dominante foi de regozijo. Muitos portugueses já conhecem a fraude judicial e a miserável conduta de um juiz que, para chegar a ministro, instrumentalizou a sua função, colocando-a ao serviço de uma caçada política. Na política institucional, o costume: o Partido Comunista e o Bloco de Esquerda saudaram a libertação, a direita institucional calou-se e o Partido Socialista mostrou indiferença: grávido de Estado, já nada o impressiona nesta história de direitos constitucionais. Pelo caminho ainda vi na televisão um deputado europeu vomitando ódio contra Lula dizendo que este é, sem dúvida, corrupto – só que não têm provas. Parece que é jurista. Como veem, não são só os brasileiros que tem que lidar com pulhas.
Enfim, regressemos a Lula da Silva. Dez anos anos depois de deixar a Presidência volta a ter que prestar provas perante uma direita que quer arrancar pela força o seu retrato da galeria dos presidentes. Na verdade, não lhe deixam alternativa. Não suportam a excepcionalidade de uma governação que foi além do esperado e do repetido. Todavia, agora, depois da encarniçada batalha de três anos, começa a emergir uma nova história. O que parecia vencido reaparece fixando a audiência com olhar digno – estou de pé. Todos os outros parecem desaparecidos, em particular os que começaram a batalha. Conseguiram o que queriam, é certo, mas a custo da democracia e da sua própria existência política – nem Temer, nem Fernando Henrique Cardoso, nem Serra, nem Alckmin, nem PSDB. O PT perdeu as eleições, está fora do poder e, contudo, este é um dos raros momentos em que só temos olhos para o vencido e para a admirável beleza da batalha tão desigual que travou.
Por opção do autor, este artigo respeita o AO90