Anunciada, e agora já realizada (e com uma tal adesão que determina a paralisação total da empresa), a greve dos trabalhadores da Autoeuropa, logo se ergueu contra estes um coro de iradas vozes.
Vozes essas que, muito significativamente, foram desde a Administração da empresa, o dirigente do Bloco de Esquerda e ex-coordenador da Comissão de Trabalhadores Manuel Chora (que até já afirmou que “se não se tivesse reformado, esta greve estava desconvocada”!?) e o ex-Presidente da UGT Torres Couto, até aos habituais comentadores e “especialistas” das nossas praças, sejam eles os jornais, as televisões ou simplesmente as chamadas redes sociais.
Também, para não dizer sobretudo, por isso mesmo, creio que importa reflectir com seriedade e sem primarismos fáceis sobre esta questão, para assim se poder compreender verdadeiramente aquilo que está aqui em causa.
Antes de mais, estamos a falar de uma empresa com 3.580 trabalhadores com uma idade média de 40 anos, elevado nível de qualificação profissional e com um dos maiores índices de produtividade do grupo Volkswagen e cuja Administração, no regime de turnos até aqui aplicado, chegou a impor aos mesmos trabalhadores, e sob o argumento do abaixamento de encomendas, mais de 20 dias de down days, ou seja, de paragem colectiva forçada do funcionamento da fábrica.
Esta é, também, uma fábrica altamente lucrativa, direccionada em mais de 99% para a (re)exportação, montagem em 4 etapas (prensas, carroçarias, pintura e montagem) com peças anteriormente importadas, tendo um impacto nas exportações nacionais na ordem dos 4%.
Os regimes laborais vigentes na Autoeuropa têm sido sistematicamente negociados entre a Administração e a Comissão de Trabalhadores, apesar de esta não ter, legalmente, qualquer competência para negociar e subscrever instrumentos de regulamentação colectiva de trabalho (questão esta que, todavia, não pareceu suscitar reparos a ninguém, mesmo aos próprios sindicatos e aos juristas mais legalistas, durante décadas a fio).
Acontece que, sob o pretexto do início da produção do novo utilitário desportivo da VW (o T-Rock) – que supostamente irá fazer subir em 2018 para 200 mil a produção de automóveis, a qual fora de 102 mil em 2015 e de apenas 90 mil em 2016 – a Administração da empresa pretendeu impor como obrigatórios quer o regime de 3 turnos, quer a prestação de trabalho no dia de descanso complementar (o Sábado) a troco de mais dinheiro (175€ de remuneração adicional e 25% de subsídio de turno) e de 1 dia adicional de férias.
Ora a dita Comissão de Trabalhadores deu o seu acordo a este novo regime nas costas dos mesmos trabalhadores, já que não os ouviu ou consultou previamente sobre o mesmo.
Perante os mais que justos protestos e denúncias, foi o dito acordo submetido, em 28 de Julho último, a um referendo, do qual resultou a sua reprovação por 74,6% dos trabalhadores. Perante tão evidente resultado, a maioria dos elementos da Comissão logo apresentou a sua demissão com efeitos a partir de 28 de Agosto. Mas ao mesmo tempo que se declarava imediatamente indisponível para tratar de quaisquer assuntos, a dita Comissão ainda teve tempo para vir defender a pretensa legalidade do novo horário de trabalho apresentado pela Administração, chegando mesmo ao ponto de referir ter para tal “consultado vários advogados”.
Como se a questão não fosse muito para além da mera legalidade formal de um novo horário que a Administração pretende à viva força impor. E é evidente que, exactamente ao invés do que pretendem os seus detractores, os trabalhadores não querem mais dinheiro nem são uns malandros que não querem é trabalhar e até já ganham mais do que mereceriam. Nem a questão se reduz ao maior ou menor oportunismo da acção desta ou daquela organização sindical.
Na verdade, para a empresa, do que se trata é, e muito claramente, de embaratecer os custos de mão-de-obra (aliás, dos mais baixos de rodo o grupo Volkswagen). É que, não contratando para esta nova produção mais operários e passando a impor o sábado como um dia de trabalho obrigatório (e não de descanso como até aqui, o que nos termos da lei implicava que quando o trabalhador fosse trabalhar recebesse a respectiva remuneração como trabalho suplementar prestado em dias de descanso), mesmo com o supra citado e prometido complemento remuneratório, a empresa teria sempre menores custos salariais. Dito de outra forma, com o novo horário e tendo de trabalhar 3 sábados num mês, cada trabalhador ganharia menos do que receberia, com o actual horário, caso fosse trabalhar 1 único sábado.
Em contrapartida, para os trabalhadores – que, com tal novo horário só poderiam ter 2 dias de descanso seguidos de 3 em 3 semanas, e teriam ainda de suportar uma enorme rotatividade horária durante mais de 2 anos – do que se trata sobretudo é de salvaguardar adequadamente os seus direitos fundamentais ao descanso semanal, ao repouso e aos lazeres, bem como à prestação de trabalho em condições de segurança e de saúde e à organização do trabalho em condições socialmente dignificantes, de forma a facultar a realização pessoal e a permitir a correcta conciliação da actividade profissional com a vida pessoal e familiar.
Tudo direitos expressamente consagrados, e para todos os trabalhadores, nas alíneas b), c) e d) do nº 1 do artigo 59º da Constituição da República Portuguesa. A qual, ao que eu saiba, não foi revogada nem suspensa…
É isto que verdadeiramente está aqui em causa.
Perante esta situação, os vários sindicatos representativos dos trabalhadores – que, é certo, até aqui sempre tinham aceite a tal legalmente inexistente competência negocial da Comissão de Trabalhadores – reuniram com a Administração da empresa e, perante a intransigência desta e a ausência de acordo, convocaram então a greve em causa, a qual decorreu, com elevadíssima adesão, entre as 22h30 de terça-feira e as 24h00 de quarta-feira.
E a ameaça de que se os trabalhadores da Autoeuropa não se agacham e não aceitam as imposições da Administração, a Volkswagen ainda deslocaliza a fábrica e os manda a todos para o desemprego, mais os trabalhadores das 47 empresas fornecedoras de peças e componentes para a fábrica, constitui, sem tirar nem pôr, uma verdadeira chantagem.
Chantagem à qual há que não ceder – por muito que gritem e até insultem os opinantes e “especialistas” da política, da comunicação social e das redes sociais – não só porque à chantagem nunca se deve ceder como por que, em última instância, uma eventual cedência à mesma representará aceitar a lógica de que é sempre possível encontrar um país onde os direitos sociais e laborais são mais espezinhados que no nosso, e, logo, para “manter a fábrica em Portugal” e “manter os postos de trabalho” todos os espezinhamentos se tornavam afinal justificáveis e aceitáveis…
E, por isso, vamos ver também como se comportam os sindicatos que agora convocaram a greve.