Como esta semana televisões e jornais nacionais deram a notícia do aparecimento de um recém nascido num caixote do lixo, gerando muitos comentários, alguns dos quais cruéis e insensíveis, voltei a lembrar a história de uma adolescente que atendi com a enfermeira Luísa.
Eu estava de urgência no Hospital Concelhio de Grândola, onde era Autoridade de Saúde e Diretora do Centro de Saúde.
Durante a urgência de 24 horas atendíamos também a problemas de índole vária que ocorressem na enfermaria de mulheres, com cerca de trinta camas, numa grande sala comum sem intimidade alguma, localizada à direita, e duas enfermarias de homens à esquerda. O hospital só tinha duas alas.
A entrada principal era estreita e dava para a sala de consultas onde eram admitidas desde os casos mais simples de uma otite, de uma amigadlite, de uma forte cólica renal, até casos complexos como a entrada súbita de poli traumatizados que nos vinham de ambulância do caos da estrada onde tinham tido acidentes graves. Muito entravam já cadáveres (e a esses teríamos de proceder à autópsia médico legal no dia seguinte), outros entravam em condições criticas onde o importante era fazer o suporte de vida, a imobilização de fraturas expostas ou muito dolorosas, canalizar a veia para administrar soros e injectáveis. Depois requisitar as ambulâncias para levar os doentes ou a Setúbal, Hospital Distrital ou a Lisboa, Hospitais Centrais. Ou seja, um médico e dois enfermeiros atendiam tudo. Era necessário fazer uma papeleta de admissão. Era necessário gerir todo o material de pequena sutura, de penso, gerir e cuidar da esterilização.
Os acontecimentos, histórias, dramas e tragédias ocorridos dentro das paredes do Hospital de Grândola davam um livro.
Como esta semana televisões e jornais nacionais deram a notícia do aparecimento de um recém nascido num caixote do lixo, gerando muitos comentários, alguns dos quais cruéis e insensíveis, voltei a lembrar a história de uma adolescente que atendi com a enfermeira Luísa.
A menina tinha dezassete anos, seria maior dentro de um mês.
Entrou no hospital sozinha, gritando muito alto, que tinha cólicas. Foi estranhamente difícil convencê-la a deitar-se na maca para a examinarmos. Ela agarrava-se ao casaco e às roupas, tapando-se e não deixando sequer fazer a palpação abdominal.
A enfermeira Luísa disse-me baixinho e cuidadosamente que ali havia gato, pois a adolescente vivia pertíssimo do Hospital, a Luísa conhecia os pais, e não entendia como estes a teriam deixado vir sem ser acompanhada para o hospital.
Conseguimos deitá-la com a promessa de uma injeção na veia que lhe ia tirar as dores. A enfª Luisa, com a experiência de muitos anos de cuidar desgraças, encostou um cotovelo na coxa da menina e forçou um pouco. Com um grito estridente a rapariguinha abriu as pernas e a Luísa eu eu vimos a cabeça do bebé a assomar à vulva. Em minutos um lindo rapazinho saiu vivo e começou a chorar.
A mãe adolescente recomeçou aos gritos reclamando que o bebé não era dela e que eu e a Luísa lho tínhamos metido entre as pernas para lhe estragarmos a vida.
A Luísa, depois de cortado o cordão umbilical saiu da sala com o menino, para o limpar e vestir, receando as investidas da mãe que estava completamente fora de si, numa enorme agitação psico motora.
Dentro de poucos minutos enquanto eu verificava se não havia hemorragia e se a placenta estava integra, ouço no corredor um alarido. Eram os pais da adolescente, que tendo dado por falta dela em casa, e avisados por vizinhos, tinham percebido que ela estava no hospital.
Contei-lhes o que tinha sucedido ali mesmo na entrada, pois não tínhamos sala nenhuma para estas conversa importantes com os familiares dos doentes.
A mãe da rapariguinha chorava e disse de imediato que queria ver o neto. O marido, que se via como um inesperado feliz avô, chorava. A Luísa trouxe-lhes o bebé, que foi logo ali acarinhado pelo casal.
Quem continuava a negar ter sido Mãe era a miúda que negava que a criança lhe tivesse saí do da barriga. De acordo com as avós recém chegados fizemos-lhe uma sedação leve, foi mudada para a enfermaria de mulheres, onde todas já sabiam da história e opinavam os mais variados comentários. A enfermeira Luísa e eu resolvemos colocar a menina mãe num extremo da enfermaria e o bercinho do bebé ficou na outra extrema, ao cuidado de pelos menos duas dezenas de mulheres a quem surgira num ápice o instinto maternal.
A adolescente ao quarto dia continuava numa atitude que parecia de intenso aborrecimento, recusava ver o bebé, continuava a insistir que não era filho dela.
A enfermeira Luísa, sem me dizer nada, chamou-me e vi-a com o embrulhinho onde a criança estava bem enrolada, escondido, a dizer à adolescente:
_Oh rapariga, mostra-me aí o peito que tens a camisa toda molhada. Isso é o leite a correr!
A rapariga abriu aos botões da camisa de dormir e ficou a olhar, pasmada, para o leite que escorria.
Num movimento cheio de uma muito antiga perícia, a Luísa colocou o bebé a jeito e este agarrou o mamilo e começou a mamar.
A adolescente desatou a chorar. Chorava quase tão convulsivamente como o bebé sôfrego mamava.
_Ai o meu rico filho! Tinha fome.
E eram lágrimas que caiam na cabeça do bebé, as lágrimas salgadas que tinham demorado quatro dias e debulhar.
Casou um mês depois com o namorado, de quem, para nossa surpresa os Pais tanto gostavam! Eram colegas de escola!
Ilustração: Gravidez tenho, de Beatriz Lamas Oliveira
Por opção do autor, este artigo respeita o AO90