PARTE I
A onda de choque provocada pela crise financeira despoletada em 2008, que alastrou às principais economias mundiais e apresenta contornos que levam a classificá-la como uma crise sistémica, continua a fazer-se sentir em muitos lugares pelo Mundo onde a situação social se apresenta suficientemente tensa para que aconteçam contestações, como a que há mais de um mês ocorre em França contra a reforma do acesso à universidade, a que se junta a contestação às reformas no sector dos caminhos de ferro propostas pelo governo Macron. Não será seguramente fortuita a coincidência desta contestação envolver a universidade, precisamente agora que se cumprem cinco décadas sobre um dos grandes acontecimentos políticos e sociais do século XX – o Maio de 68 – designação que ficou para a história do movimento social que abalou a França gaullista da época e cuja deflagração também se deveu à contestação estudantil.
Para a geração que a viveu ficaram as memórias, palavras e imagens que ao longo dos últimos cinquenta anos têm procurado explicar e/ou justificar os acontecimentos da época, cuja abordagem superficial poderá revelar que após um curto período de contestação e agitação se seguiu a normalização que se impunha; porém o que então aconteceu em Paris não deve ser analisado fora do contexto do país, da Europa e do mundo e dela deveriam ser retirados ensinamentos.
Enquadramento local
A década de 60 do século XX terá sido uma das mais férteis em movimentações sociais, culturais e políticas; num ambiente de Guerra Fria e de contestação à actuação norte-americana no Vietname, surgia nos EUA um movimento cultural (mas também de contestação à guerra) que ficou conhecido como o movimento “hippie”, que no mercado emergente da música popular lançou nomes como os de Joan Baez, Janis Joplin, The Grateful Dead, Creedence Clearwater Revival, Crosby, Stills, Nash & Young, Carlos Santana e Jimi Hendrix, enquanto em Inglaterra surgiam grupos musicais como The Beatles e Rolling Stones inseridos numa onda de renovação musical com origens nos EUA, mas também de contestação aos valores morais vigentes na época.
Se recordarmos que as razões próximas para a agitação tiveram lugar na Universidade de Nanterre, que entre as principais reivindicações que os seus estudantes apresentaram se conta o livre acesso às residências estudantis (na época não era permitida a frequência dos edifício residenciais aos estudantes de sexos diferentes) e que a principal razão para o alastramento do movimento foi a invasão policial daquela cidade universitária decidida pelo reitor após uma tentativa de ocupação de uma residência de raparigas.
O desrespeito da ancestral regra de não intromissão das forças policiais na universidade foi o rastilho para sucessivas manifestações de estudantes noutros pontos do país e em especial na Sorbonne.
Numa época em que se registava a chegada de um número crescente de alunos ao ensino superior, fruto dos anos de crescimento económico no pós-guerra e do aumento da população (baby boom), e em que se mantinham inalteradas as mentalidades de professores e governantes, a irreverência própria da juventude e uma quase completa insensibilidade para lidar com ela acabou por crescer até ao ponto de Paris se ter transformado num campo de batalhas quase diárias entre estudantes e polícia. Foi o período das barricadas (recordando os antigos tempos da Comuna de Paris) e aquele que celebrizou a praia que existia por baixo das calçadas (referência a um dos slogans mais populares do Maio de 68 – «Sous les pavés, la plage», que se pode traduzir por: a praia sob a calçada – e que resultou do facto de durante a construção das barricadas e do seu “municiamento”, mediante recurso aos paralelipípedos que então pavimentavam a zona, ter sido posto a descoberto a camada de areia onde aqueles assentavam) do Quartier Latin, bairro parisiense onde se localizam as principais instalações universitárias da cidade.
Naturalmente a década que via a geração do pós-guerra atingir a maioridade e um relativo desafogo económico marcou também a natureza política dos acontecimentos estudantis que ocorreram nos EUA, Alemanha, Checoslováquia, Japão, Itália, México e Brasil, mas foi em França onde esta nova realidade foi mais longe. Originado num movimento de contestação estudantil iniciado em Março, ampliar-se-ia até colocar o país numa situação próxima da greve geral; em Maio, no apogeu da crise o presidente Charles de Gaulle chegou a procurar refúgio em instalações militares na Alemanha, enquanto o governo, liderado por Georges Pompidou, propunha a realização de eleições antecipadas.
Esta medida viria a revelar-se essencial para a sobrevivência de um sistema político que no início da crise estudantil revelou a maior inépcia e incapacidade para enfrentar uma situação que escapava aos padrões normais da época, pois os estudantes que não reivindicavam melhor ensino ou melhores condições nas universidades, mas o fim das discriminações de âmbito sexual (na época o acesso às instalações universitárias femininas estavam vedadas aos alunos masculinos) rapidamente evoluíram essas reivindicações em resposta à ocupação policial do campus universitário ordenada pelo governo.
Com o Quartier Latin transformado em campo de batalha entre estudantes e a polícia e com a crescente politização do movimento, a situação aproximou-se do incontrolável. As forças políticas tradicionais, qualquer que fosse o quadrante político em que se inseriam, revelaram enormes dificuldades em entender as motivações dos estudantes e estes, movidos principalmente pela irreverência e por um forte sentido de contestação, ainda que ideologicamente divididos entre maoistas, trotskistas e anarquistas, lograram organizar uma plataforma de resistência a que os slogans e as palavras de ordem da época (uma ideia sobre a variedade, a ingenuidade e a engenhosidade destes slogans pode ser obtida através da consulta deste endereço na Net: http://users.skynet.be/ddz/mai68, onde o seu autor compilou centenas deles) deram visibilidade.
O movimento alastra quando o SNE (sindicato dos professores do ensino superior) se pronuncia a favor dos estudantes e mesmo a oposição da CGT (a principal confederação sindical francesa) virá a revelar-se ineficaz; as tentativas dos líderes da CGT, como Georges Séguy, e do PCF para desacreditarem as movimentações estudantis, apelidando-as de pueris, pequeno-burguesas e esquerdistas, colhem pouco ou nenhum eco quando pequenos sindicatos de empresa começam a ocupar fábricas, a solidarizar-se com os estudantes e a formalizar novas reivindicações.
De um pequeno incidente no meio estudantil o movimento de contestação alastrava ao mundo laboral e quando a RENAULT entra também em greve a situação no país tende a deteriorar-se, a ponto dos trabalhadores prolongarem a greve após os sindicatos terem obtido a concessão de aumentos de 10% e de 35% para o salário mínimo.
Receando a queda do governo, o presidente Charles de Gaulle (general que liderou o processo de resistência à ocupação alemã durante a II Guerra Mundial, exerceu os cargos de primeiro-ministro entre 1944 e 1946 e entre 1958 e 1959 e o de presidente da república entre 1959 e 1969) dissolve a Assembleia Nacional e convoca eleições antecipadas. Às manifestações dos estudantes sucedem-se manifestações pró-de Gaulle e a crescente convergência entre gaullistas e demais agrupamentos de centro e de direita concluir-se-á com uma vitória, nas eleições de Junho, do partido do presidente (UDR – União Democrática Republicana) e um recuo dos partidos de esquerda.
Depois dos quentes dias de Maio, que viram emergir entre o movimento estudantil figuras como Daniel Cohn-Bendit (popularizado com o nome de Dany Le Rouge e hoje eurodeputado pelos Verdes, outras figuras da cultura e da política viveram o Maio de 68, entre as quais se salientaram: Jean Paul Sartre, filósofo existencialista que cedo se declarou a favor dos estudantes e que viria mais tarde a colaborar na fundação do jornal Libération, considerado como um dos produtos de Maio de 68; Louis Aragon, poeta e um dos fundadores do movimento surrealista, militante comunista que talvez devido à posição dúbia do PCF sofreu o repúdio dos estudantes quando procurou solidarizar-se com eles; Bernard Kouchner, médico e ex-ministro dos negócios estrangeiros do governo de Nicolas Sarkozy, fundador da ONG Médicos Sem Fronteiras e que na época liderou as greves na Faculdade de Medicina; Alain Krivine, líder da Liga Comunista Revolucionária (trotskista) e das manifestações estudantis veio a ser detido após a ilegalização da LCR e mais tarde candidato às presidências de 1969 e 1974 e eurodeputado) e saltar para a rua e para o léxico popular exigências de liberdade, afirmação pessoal, novos valores sociais, culturais, políticos e até sexuais, a França (e o Mundo) pareceram ter readquirido a calma e a pacatez anteriores e própria dos valores conservadores, mas as aparências iludem…
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