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Segunda-feira, Novembro 4, 2024

Manifesto para salvar a Europa de si própria

Arnaldo Xarim
Arnaldo Xarim
Economista

Enquanto se aguardava pelo discurso televisivo de um Emmanuel Macron quase sitiado pelos gilet jaune onde anunciaria uma subidano salário mínimo mas nenhuma alteração à sua política fiscal de favorecimento aos grandes rendimentos, a semana iniciou-se com a publicação de um artigo de opinião assinado por Thomas Piketty no jornal inglês The Guardian, onde expõe o teor de um manifesto, que co-assina com uma dezena de outros intelectuais, sobre a situação europeia.

Apresentado, pelo próprio, como um manifesto para salvar a Europa de si própria, aqui fica uma versão por mim traduzida:

O manifesto

Nós, cidadãos europeus de diferentes origens e países, exigimos hoje uma profunda transformação das instituições e políticas europeias. Este Manifesto contém propostas concretas, em particular um projecto de Tratado de democratização e um projecto de Orçamento, que pode ser adoptado e aplicado pelos países que o desejem, sem que nenhum país possa bloquear aqueles que desejam avançar. Pode ser assinado online (www.tdem.eu) por todos os cidadãos e cidadãs europeus que nela se reconheçam. Pode ser usado e melhorado por todos os movimentos políticos.

Depois do Brexit e da eleição de governos antieuropeus à frente de vários países membros, não podemos continuar como antes. Não é mais possível esperar pelas próximas desistências, o próximo desmantelamento, sem mudar nada de fundamental na actual Europa.

Por um lado o nosso continente está agora espartilhado entre movimentos políticos cujo único programa é perseguir estrangeiros e refugiados, um programa que começaram agora a implementar; pelo outro lado, temos partidos que se dizem europeus, mas que na realidade continuam a imaginar que o liberalismo puro e duro e a competição generalizada de todos (estados, empresas, territórios, indivíduos) são suficientes para definir um projecto político, sem perceber que é justamente a falta de ambição social que alimenta o sentimento de abandono.

Existem alguns movimentos sociais e políticos que tentam romper com este diálogo mortal, movendo-se na direcção de uma refundação política, social e ambiental para a Europa. Porque após uma década de crise económica, não faltam situações críticas especificamente europeias: subinvestimento estrutural no sector público, particularmente na área da formação e investigação, aumento da desigualdade social, aceleração do aquecimento global e uma crise no acolhimento de migrantes e refugiados. Mas estes movimentos têm frequentemente dificuldade em formular um projecto alternativo concreto, isto é, em descrever precisamente como gostariam de organizar a Europa do futuro e o processo de tomada de decisão democrática no seu seio.

Nós, cidadãos europeus, colocamos na praça pública com este Manifesto, este Tratado e este Orçamento, propostas específicas. Elas são imperfeitos, mas têm o mérito de existir: todos podem aproveitá-las para melhorá-las. Baseiam-se numa simples convicção: a Europa deve construir para os seus cidadãos um modelo original de desenvolvimento social, equitativo e sustentável, e a única maneira de os convencer é abandonar promessas vagas e teóricas. A Europa só se reconciliará com os seus cidadãos se fornecer provas concretas de que é capaz de estabelecer solidariedade entre os europeus e de forçar os beneficiados da globalização a contribuírem equitativamente no financiamento dos bens públicos de que a Europa é hoje extremamente carente: isto é, fazer com que as grandes empresas contribuam mais do que as pequenas e médias empresas, e os contribuintes mais ricos do que os mais modestos, o que não é o caso na actualidade.

As nossas propostas baseiam-se na criação de um Orçamento de Democratização, discutido e votado por uma assembleia europeia soberana, que dote finalmente a Europa de um poder público capaz de enfrentar simultaneamente e sem demora as emergências europeias e a produção de bens públicos como parte de uma economia sustentável e inclusiva. É assim que podemos finalmente dar sentido à promessa feita no Tratado de Roma de “equalização no progresso das condições de vida e de trabalho”.

Este orçamento, se assim o desejar a Assembleia Europeia, será financiado por quatro grandes impostos europeus, marcadores concretos desta solidariedade europeia, que incidirá nos lucros das grandes empresas, com rendimentos elevados (superiores a 200.000 euros por ano), alto património (mais de 1 milhão de euros) e emissões de carbono (com um preço mínimo de 30 euros por tonelada, que deve ser aumentado anualmente). Se fosse fixado em 4% do PIB, como propomos, este orçamento poderia financiar investigação, formação e universidades europeias, um ambicioso programa de investimento para transformar o nosso modelo de crescimento, financiar o acolhimento de migrantes e acompanhar os actores da transformação; mas também devolver aos Estados-Membros margem de manobra para reduzir as taxas regressivas sobre os salários ou o consumo.

Não se trata aqui de criar uma “Europa das transferências”que procure tirar dinheiro de países “virtuosos” para o dar àqueles que o são menos. O projecto de Tratado de democratização di-lo explicitamente, limitando a diferença entre as despesas e as receitas recebidas por um país a um limite de 0,1% do PIB. Este limite pode ser aumentado se houver um consenso a este respeito, mas o verdadeiro desafio está noutro lugar: é principalmente para reduzir as desigualdades dentro dos países e investir no futuro de todos os europeus, a começar, naturalmente, pelos mais jovens deles, sem favorecer um país sobre outro. Esse cálculo exclui despesas e investimentos realizados num país a fim de cumprir um objectivo de interesse comum beneficiando também todos os países, tais como a luta contra o aquecimento global. Porque permitirá financiar bens públicos europeus que beneficiarão da mesma forma o conjunto dos Estados-membros, o Orçamento de democratização induzirá de facto um efeito de convergência entre os estados europeus.

Porque é preciso agir rápido, mas também retirar a Europa da rotina tecnocrática, propomos a criação de uma Assembleia Europeia que permitirá discutir e votar esses novos impostos europeus como o orçamento de democratização, sem que seja necessário modificar de imediato o conjunto dos tratados europeus.

Essa Assembleia Europeia deverá, naturalmente, dialogar com os actuais órgãos de decisão (em particular o Eurogrupo que reúne mensalmente e de forma informal os ministros das finanças da Zona Euro), mas será ela quem, em caso de desacordo, terá a última palavra. Trata-se de sua capacidade de ser o lugar onde se forma um novo espaço político transnacional, onde partidos, movimentos sociais e ONGs poderão finalmente recuperar o controle. Mas também é verdade quanto à sua eficácia, uma vez que se trata de finalmente arrancar a Europa do eterno impasse das negociações intergovernamentais. Lembre-se que a regra da unanimidade fiscal em vigor na UE há anos que bloqueia a adopção de qualquer imposto europeu e alimenta a eterna fuga em frente para o dumping fiscal em benefício dos mais ricos e com maior mobilidade, que continua até hoje, apesar de todos os discursos, e continuará enquanto novas regras de decisão não forem implementadas.

Porque esta Assembleia Europeia terá competência para adoptar impostos e chegar ao cerne do pacto democrático, fiscal e social dos Estados membros, é importante envolver parlamentares nacionais e europeus. Dando aos primeiros um lugar central, vamos transformar de facto as eleições nacionais em eleições europeias: os deputados nacionais não se poderão contentar a descartar com Bruxelas, e não terão outra escolha senão explicar aos eleitores os projectos e orçamentos que pretendem defender na Assembleia Europeia. Ao reunir deputados nacionais e europeus numa mesma Assembleia, vamos criar práticas de co-governança que existem hoje entre os chefes de Estado e ministros de finanças.

É por isso que propomos, no Tratado de democratização disponível online (www.tdem.eu), que 80% da Assembleia Europeia se baseie nos deputados dos parlamentos nacionais dos países que irão aderir ao Tratado (proporcionalmente às populações dos países e grupos políticos) e a 20% dos membros do actual Parlamento Europeu (na proporção dos grupos políticos). Esta escolha merece uma discussão mais aprofundada. Em particular, o nosso projecto também poderia funcionar com uma menor proporção de deputados nacionais (por exemplo, 50%). Mas se essa proporção ficar muito baixa, então a Assembleia Europeia poderia, em nossa opinião, ser menos legítima para mobilizar todos os cidadãos europeus na via para um novo pacto social e fiscal, e conflitos de legitimidade democrática entre eleições nacionais e europeias poderiam rapidamente minar o projecto.

Precisamos agir agora rapidamente. Se é desejável que todos os países da União Europeia se juntem rapidamente ao projecto, e é preferível que os quatro maiores países da Zona Euro (que juntos respondem por mais de 70% do PIB e da população da zona) o adoptem imediatamente, todo o projecto foi concebido para que possa ser legal e economicamente adoptado e aplicado por qualquer subconjunto de países que o desejem. O ponto é importante, porque permite aos países e aos movimentos políticos que o desejem demonstrar a sua disposição concreta de avançar, adoptando agora este projecto, ou uma sua forma melhorada. Apelamos a todos os homens e mulheres para que assumam as suas responsabilidades e participem numa discussão detalhada e construtiva sobre o futuro da Europa

Em resumo pode-se dizer que a proposta sugere a criação de uma Assembleia Europeia soberana, espaço político e democrático transnacional; um orçamento, para iniciar a transição ecológica e social e criar uma política europeia comum; e uma alavanca política, um processo para finalmente retirar a Europa do imobilismo a que se votou.

A imprensa, nomeadamente o EXPRESSO na sua coluna Expresso Curto, fez pronto eco da proposta dos quatro impostos sobre os “vencedores da globalização” –  um sobre as grandes empresas, outro sobre a riqueza privada, outro ainda sobre os rendimentos mais altos e por uma taxa sobre as emissões de carbono –, com os quais se financiaria um orçamento europeu, mas pouca relevância deu ao resto das propostas.

Analisando calmamente o texto, que apresenta propostas concretas e claramente orientadas para o futuro e para alguns dos grandes constrangimentos que a UE tem revelado, a saber: a fraca representatividade dos seus dirigentes e uma progressiva subalternização do seu parlamento (o único órgão efectivamente eleito) a par com uma criação de estruturas desprovidas de base legal (de que é primeiro exemplo o famigerado Eurogrupo), de reduzido fundamento democrático e nulo escrutínio pelo Parlamento Europeu; uma proposta de política concertada para o investimento europeu em áreas fulcrais como a investigação, a transformação do modelo económico europeu, as políticas de acolhimento de migrantes e a devolução aos Estados-Membros de margem de manobra para a redução de impostos sobre os salários ou o consumo (um passo importante no combate à desigualdade, mas também no sentido da credibilidade dos sistemas fiscais), a par com uma louvável intenção de reforço das bases democráticas de funcionamento, dificilmente alguém lhe poderá criticar a credibilidade, tanto mais que lhe junta propostas concretas para o financiamento das iniciativas que propõe.

Estas centram-se em medidas de natureza fiscal mas com um forte pendor social e uma expressa intenção de não onerar os sectores de actividade económica tradicional nem os rendimentos de menor expressão, pelo que por si só seria já um importante contributo para a redução de desequilíbrios e desigualdades.

Não fosse a completa ausência de qualquer referência a uma indispensável harmonização fiscal, a uma das grandes condicionantes da UE e da Zona Euro em especial – o vício de base de que padece uma moeda única que coloca toda a economia europeia numa estrita dependência do sector financeiro, minimizável mediante o regresso do poder de criação de moeda ao BCE – e à inexistência de qualquer preocupação com a questão da defesa do espaço comum – a definição de uma política comum de defesa e um adequado investimento numa área da maior premência estratégica, numa conjuntura onde facilmente se antevê a necessidade projectar força nem que seja para fins meramente comerciais e onde bastaria que esse investimento fosse realizado na indústria militar europeia para ser ainda gerador de crescimento económico – e assinava o texto de cruz.

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