Enquanto se aguardava pelo discurso televisivo de um Emmanuel Macron quase sitiado pelos gilet jaune onde anunciaria uma subidano salário mínimo mas nenhuma alteração à sua política fiscal de favorecimento aos grandes rendimentos, a semana iniciou-se com a publicação de um artigo de opinião assinado por Thomas Piketty no jornal inglês The Guardian, onde expõe o teor de um manifesto, que co-assina com uma dezena de outros intelectuais, sobre a situação europeia.
Apresentado, pelo próprio, como um manifesto para salvar a Europa de si própria, aqui fica uma versão por mim traduzida:
O manifesto
Nós, cidadãos europeus de diferentes origens e países, exigimos hoje uma profunda transformação das instituições e políticas europeias. Este Manifesto contém propostas concretas, em particular um projecto de Tratado de democratização e um projecto de Orçamento, que pode ser adoptado e aplicado pelos países que o desejem, sem que nenhum país possa bloquear aqueles que desejam avançar. Pode ser assinado online (www.tdem.eu) por todos os cidadãos e cidadãs europeus que nela se reconheçam. Pode ser usado e melhorado por todos os movimentos políticos.
Depois do Brexit e da eleição de governos antieuropeus à frente de vários países membros, não podemos continuar como antes. Não é mais possível esperar pelas próximas desistências, o próximo desmantelamento, sem mudar nada de fundamental na actual Europa.
Por um lado o nosso continente está agora espartilhado entre movimentos políticos cujo único programa é perseguir estrangeiros e refugiados, um programa que começaram agora a implementar; pelo outro lado, temos partidos que se dizem europeus, mas que na realidade continuam a imaginar que o liberalismo puro e duro e a competição generalizada de todos (estados, empresas, territórios, indivíduos) são suficientes para definir um projecto político, sem perceber que é justamente a falta de ambição social que alimenta o sentimento de abandono.
Existem alguns movimentos sociais e políticos que tentam romper com este diálogo mortal, movendo-se na direcção de uma refundação política, social e ambiental para a Europa. Porque após uma década de crise económica, não faltam situações críticas especificamente europeias: subinvestimento estrutural no sector público, particularmente na área da formação e investigação, aumento da desigualdade social, aceleração do aquecimento global e uma crise no acolhimento de migrantes e refugiados. Mas estes movimentos têm frequentemente dificuldade em formular um projecto alternativo concreto, isto é, em descrever precisamente como gostariam de organizar a Europa do futuro e o processo de tomada de decisão democrática no seu seio.
Nós, cidadãos europeus, colocamos na praça pública com este Manifesto, este Tratado e este Orçamento, propostas específicas. Elas são imperfeitos, mas têm o mérito de existir: todos podem aproveitá-las para melhorá-las. Baseiam-se numa simples convicção: a Europa deve construir para os seus cidadãos um modelo original de desenvolvimento social, equitativo e sustentável, e a única maneira de os convencer é abandonar promessas vagas e teóricas. A Europa só se reconciliará com os seus cidadãos se fornecer provas concretas de que é capaz de estabelecer solidariedade entre os europeus e de forçar os beneficiados da globalização a contribuírem equitativamente no financiamento dos bens públicos de que a Europa é hoje extremamente carente: isto é, fazer com que as grandes empresas contribuam mais do que as pequenas e médias empresas, e os contribuintes mais ricos do que os mais modestos, o que não é o caso na actualidade.
As nossas propostas baseiam-se na criação de um Orçamento de Democratização, discutido e votado por uma assembleia europeia soberana, que dote finalmente a Europa de um poder público capaz de enfrentar simultaneamente e sem demora as emergências europeias e a produção de bens públicos como parte de uma economia sustentável e inclusiva. É assim que podemos finalmente dar sentido à promessa feita no Tratado de Roma de “equalização no progresso das condições de vida e de trabalho”.
Este orçamento, se assim o desejar a Assembleia Europeia, será financiado por quatro grandes impostos europeus, marcadores concretos desta solidariedade europeia, que incidirá nos lucros das grandes empresas, com rendimentos elevados (superiores a 200.000 euros por ano), alto património (mais de 1 milhão de euros) e emissões de carbono (com um preço mínimo de 30 euros por tonelada, que deve ser aumentado anualmente). Se fosse fixado em 4% do PIB, como propomos, este orçamento poderia financiar investigação, formação e universidades europeias, um ambicioso programa de investimento para transformar o nosso modelo de crescimento, financiar o acolhimento de migrantes e acompanhar os actores da transformação; mas também devolver aos Estados-Membros margem de manobra para reduzir as taxas regressivas sobre os salários ou o consumo.
Não se trata aqui de criar uma “Europa das transferências”que procure tirar dinheiro de países “virtuosos” para o dar àqueles que o são menos. O projecto de Tratado de democratização di-lo explicitamente, limitando a diferença entre as despesas e as receitas recebidas por um país a um limite de 0,1% do PIB. Este limite pode ser aumentado se houver um consenso a este respeito, mas o verdadeiro desafio está noutro lugar: é principalmente para reduzir as desigualdades dentro dos países e investir no futuro de todos os europeus, a começar, naturalmente, pelos mais jovens deles, sem favorecer um país sobre outro. Esse cálculo exclui despesas e investimentos realizados num país a fim de cumprir um objectivo de interesse comum beneficiando também todos os países, tais como a luta contra o aquecimento global. Porque permitirá financiar bens públicos europeus que beneficiarão da mesma forma o conjunto dos Estados-membros, o Orçamento de democratização induzirá de facto um efeito de convergência entre os estados europeus.
Porque é preciso agir rápido, mas também retirar a Europa da rotina tecnocrática, propomos a criação de uma Assembleia Europeia que permitirá discutir e votar esses novos impostos europeus como o orçamento de democratização, sem que seja necessário modificar de imediato o conjunto dos tratados europeus.
Essa Assembleia Europeia deverá, naturalmente, dialogar com os actuais órgãos de decisão (em particular o Eurogrupo que reúne mensalmente e de forma informal os ministros das finanças da Zona Euro), mas será ela quem, em caso de desacordo, terá a última palavra. Trata-se de sua capacidade de ser o lugar onde se forma um novo espaço político transnacional, onde partidos, movimentos sociais e ONGs poderão finalmente recuperar o controle. Mas também é verdade quanto à sua eficácia, uma vez que se trata de finalmente arrancar a Europa do eterno impasse das negociações intergovernamentais. Lembre-se que a regra da unanimidade fiscal em vigor na UE há anos que bloqueia a adopção de qualquer imposto europeu e alimenta a eterna fuga em frente para o dumping fiscal em benefício dos mais ricos e com maior mobilidade, que continua até hoje, apesar de todos os discursos, e continuará enquanto novas regras de decisão não forem implementadas.
Porque esta Assembleia Europeia terá competência para adoptar impostos e chegar ao cerne do pacto democrático, fiscal e social dos Estados membros, é importante envolver parlamentares nacionais e europeus. Dando aos primeiros um lugar central, vamos transformar de facto as eleições nacionais em eleições europeias: os deputados nacionais não se poderão contentar a descartar com Bruxelas, e não terão outra escolha senão explicar aos eleitores os projectos e orçamentos que pretendem defender na Assembleia Europeia. Ao reunir deputados nacionais e europeus numa mesma Assembleia, vamos criar práticas de co-governança que existem hoje entre os chefes de Estado e ministros de finanças.
É por isso que propomos, no Tratado de democratização disponível online (www.tdem.eu), que 80% da Assembleia Europeia se baseie nos deputados dos parlamentos nacionais dos países que irão aderir ao Tratado (proporcionalmente às populações dos países e grupos políticos) e a 20% dos membros do actual Parlamento Europeu (na proporção dos grupos políticos). Esta escolha merece uma discussão mais aprofundada. Em particular, o nosso projecto também poderia funcionar com uma menor proporção de deputados nacionais (por exemplo, 50%). Mas se essa proporção ficar muito baixa, então a Assembleia Europeia poderia, em nossa opinião, ser menos legítima para mobilizar todos os cidadãos europeus na via para um novo pacto social e fiscal, e conflitos de legitimidade democrática entre eleições nacionais e europeias poderiam rapidamente minar o projecto.
Precisamos agir agora rapidamente. Se é desejável que todos os países da União Europeia se juntem rapidamente ao projecto, e é preferível que os quatro maiores países da Zona Euro (que juntos respondem por mais de 70% do PIB e da população da zona) o adoptem imediatamente, todo o projecto foi concebido para que possa ser legal e economicamente adoptado e aplicado por qualquer subconjunto de países que o desejem. O ponto é importante, porque permite aos países e aos movimentos políticos que o desejem demonstrar a sua disposição concreta de avançar, adoptando agora este projecto, ou uma sua forma melhorada. Apelamos a todos os homens e mulheres para que assumam as suas responsabilidades e participem numa discussão detalhada e construtiva sobre o futuro da Europa.»
Em resumo pode-se dizer que a proposta sugere a criação de uma Assembleia Europeia soberana, espaço político e democrático transnacional; um orçamento, para iniciar a transição ecológica e social e criar uma política europeia comum; e uma alavanca política, um processo para finalmente retirar a Europa do imobilismo a que se votou.
A imprensa, nomeadamente o EXPRESSO na sua coluna Expresso Curto, fez pronto eco da proposta dos quatro impostos sobre os “vencedores da globalização” – um sobre as grandes empresas, outro sobre a riqueza privada, outro ainda sobre os rendimentos mais altos e por uma taxa sobre as emissões de carbono –, com os quais se financiaria um orçamento europeu, mas pouca relevância deu ao resto das propostas.
Analisando calmamente o texto, que apresenta propostas concretas e claramente orientadas para o futuro e para alguns dos grandes constrangimentos que a UE tem revelado, a saber: a fraca representatividade dos seus dirigentes e uma progressiva subalternização do seu parlamento (o único órgão efectivamente eleito) a par com uma criação de estruturas desprovidas de base legal (de que é primeiro exemplo o famigerado Eurogrupo), de reduzido fundamento democrático e nulo escrutínio pelo Parlamento Europeu; uma proposta de política concertada para o investimento europeu em áreas fulcrais como a investigação, a transformação do modelo económico europeu, as políticas de acolhimento de migrantes e a devolução aos Estados-Membros de margem de manobra para a redução de impostos sobre os salários ou o consumo (um passo importante no combate à desigualdade, mas também no sentido da credibilidade dos sistemas fiscais), a par com uma louvável intenção de reforço das bases democráticas de funcionamento, dificilmente alguém lhe poderá criticar a credibilidade, tanto mais que lhe junta propostas concretas para o financiamento das iniciativas que propõe.
Estas centram-se em medidas de natureza fiscal mas com um forte pendor social e uma expressa intenção de não onerar os sectores de actividade económica tradicional nem os rendimentos de menor expressão, pelo que por si só seria já um importante contributo para a redução de desequilíbrios e desigualdades.
Não fosse a completa ausência de qualquer referência a uma indispensável harmonização fiscal, a uma das grandes condicionantes da UE e da Zona Euro em especial – o vício de base de que padece uma moeda única que coloca toda a economia europeia numa estrita dependência do sector financeiro, minimizável mediante o regresso do poder de criação de moeda ao BCE – e à inexistência de qualquer preocupação com a questão da defesa do espaço comum – a definição de uma política comum de defesa e um adequado investimento numa área da maior premência estratégica, numa conjuntura onde facilmente se antevê a necessidade projectar força nem que seja para fins meramente comerciais e onde bastaria que esse investimento fosse realizado na indústria militar europeia para ser ainda gerador de crescimento económico – e assinava o texto de cruz.
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