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Terça-feira, Julho 16, 2024

Como o herdeiro de Mariano Gago deixa abandalhar a carreira universitária

Nuno Ivo Gonçalves
Nuno Ivo Gonçalves
Economista, Mestre em Administração e Políticas Públicas, Doutor em Sociologia Política. Exerceu actividade em Gestão Pública, Recuperação de Empresas, Auditoria e Fiscalização e foi docente no ISE e no ISG. Investiga em História Contemporânea.

A carreira docente universitária tem sido quase diria invariavelmente apresentada como de “elevada qualificação, exigência e responsabilidade

A carreira docente universitária tem sido quase diria invariavelmente apresentada como de “elevada qualificação, exigência e responsabilidade”, em primeiro lugar por ser uma carreira hierarquizada em que se espera que os professores colocados no topo da carreira tenham uma palavra a dizer sobre a coordenação do ensino e sobre a qualidade dos curricula científicos, em que o atingir-se uma determinada categoria pressupõe o  reconhecimento do mérito e a obrigação de que o titular exerça as suas funções em conformidade com a posição atingida, e, também, que à categoria atingida corresponda uma remuneração adequada, que prestigie o exercício.

Recordo a este ultimo respeito um discurso de Fernando Emygdio da Silva em que evocava a criação da Faculdade de Direito de Lisboa em 1913, e, entre outros aspectos, apresentava o bom entendimento entre os Professores da Faculdade de Direito de Lisboa como um dos pontos fortes desta, exemplificando:

Devi ao primeiro director da Faculdade a minha promoção a professor ordinário. Sem lho pedir, é evidente, anunciou-me que havia requerido a sua transferência de grupo para eu mais depressa ser promovido. Nunca o esqueci, como se compreende. Só lhe associo o obsequioso afã de Queirós Veloso, então director geral da instrução superior, que não descansou enquanto não giraram os prelos do “Diário do Governo”. Eram 30.000  réis a mais, por mês. A gente nova deixou de entender estas contas.

O director assim publicamente elogiado em 1957 pelo Professor de Finanças de Lisboa era o já falecido Afonso Costa, por ocasião da fundação da Faculdade investido nos cargos de Presidente do Ministério e Ministro das Finanças. O Professor de Finanças de Coimbra, Oliveira Salazar era desde há 25 anos Presidente do Conselho de Ministros, tendo desde então Fernando Emygdio sinalizado  que não se iria envolver na Política. Ainda assim no discurso enfatizou  que “todas as cátedras da Faculdade estiveram sempre ocupadas por pessoas que as não deviam ao favor de ninguém, mas a provas públicas, ou remotas ou próximas, que lhes davam direito a sentar-se nesses lugares”, recordando também o momento em que numa resolução (de 1927) depois alterada se pretendeu suprimir a Faculdade de Direito de Lisboa, medida da qual se tivesse sido concretizada, a escola, dado o ambiente de prestígio que a rodeava, cedo ou tarde haveria de ressuscitar.

Em 1970, no que pode ser visto como um primeiro Estatuto da Carreira Docente Universitária, Veiga Simão, mantendo as categorias de professor catedrático e de professor extraordinário, previa que os docentes habilitados com o grau de doutor fossem contratados como professores auxiliares (e não como “primeiros assistentes”)

O propriamente dito Estatuto (ECDU) seria aprovado em 1979 e ratificado parlamentarmente com emendas em 1980 num processo em que a Aliança Democrática e alguns sectores docentes  procuraram evitar o que lhes pareceu uma passagem administrativa de todos os professores extraordinários a professores catedráticos e de todos os então professores auxilares  para a nova categoria de professor associado, mas deram alguma segurança, incluindo o regime de nomeação, aos professores auxiliares que aguardassem o concurso para professores associados. ´

Ao longo da década de 1980  continuou a  verificar-se  alguma discussão estatutária, incidindo sobretudo sobre a passagem do regime de dedicação exclusiva a regime regra e sobre o regime remuneratório, que de 1987 a 1989 esteve indexado, por iniciativa parlamentar, ao da magistratura. 1989 foi um ano de crise aberta, com o fim desta indexação, as grandes greves dos docentes do ensino superior às provas específicas e a formação de um sindicato de docentes e investigadores próprio (SNESup). Na aplicação do então Novo Sistema Retributivo à carreira universitária os professores auxiliares com agregação e os professores associados com agregação passaram a ter escalas indiciárias próprias, ficando a carreira, para efeitos remuneratórios, com 5 categorias de professores. Depois de um movimento grevista em 1995 os sindicatos arrancam um acordo de legislatura  que valorizou  substancialmente os índices.

No entanto em fins de 1999 as regras relativas a promoções – isto é, de mudança de categoria – começam a ser contestadas, e a falar-se de “bloqueios administrativos à progressão”, sobretudo na categoria de professor auxiliar , havendo embora casos em que os interessados aceitam concorrer para lugares nas Universidades periféricas, há a percepção de que nas próprias escolas não abrirão nunca vagas de professor associado suficientes. Por outro lado os concursos  permitem a candidatura de professores de outras escolas e até de outros doutores com pelo menos cinco anos de experiência docente. Começa a falar-se da necessidade de separação da promoção  e do recrutamento e de promoção por “mérito absoluto”.  E um dia os órgãos dos  três  sindicatos que se apresentavam como Plataforma Reivindicativa Comum (PRC) recebem um documento enviado à tutela pelos seus representantes nesta Plataforma em que, simplificando, se previa

A criação de um número de lugares de quadro de professor catedrático igual ao do número de professores associados com 10 anos na categoria, idem de lugares de professor associado igual ao número de professores auxiliares com 10 anos na categoria, abertura de “concursos” reservados, e, a final, eliminação dos lugares que não viessem a ser preenchidos.

Tratava-se de uma proposta que merecia a qualificação de “pouca vergonha” ou de “ignóbil porcaria” e cuidava apenas da situação dos “velhinhos”, onde se incluíam pelo menos dois dos representantes sindicais na PRC seus signatários, não tendo tido reacção do Governo, todavia viria a ser retomada num acordo para a revisão do ECDU, com um Secretário de Estado de Augusto Santos Silva, sob a forma de permanência minima de 9 anos na categoria de professor auxiliar para concorrer a professor associado. No entanto no SNESup o debate interno – num Encontro, em Conselho Nacional, em eleições, em Assembleia Geral – levaram a delinear uma solução baseada na construção de quadros de dotação global com quotas externas (às quais concorreriam outros candidatos) e uma oportuna remodelação do Governo Guterres paralisou de facto a revisão.

Em 2009 (curioso como estes momentos ocorrem após  períodos de 10 anos) a revisão operada no ECDU por Mariano Gago – de que Manuel Heitor era Secretário de Estado, lembram-se? – já não teve a limitação da existência de quadros, e o Ministro “comprou” a assinatura de acordos e actas (excepto com o SNESup que não assinou nem um nem outra) com uma vaga promessa de um limite mínimo para os efectivos de professores catedráticos e professores associados – mas deu um passo mais longo e eliminou a necessidade de pertencer a uma categoria de professores para concorrer à categoria superior, exigindo-se simplesmente aos professores auxiliares o doutoramento, aos professores associados o doutoramento há mais de cinco anos, aos professores catedráticos o doutoramento há mais de cinco anos e a agregação. A  carreira docente universitária deixou, em rigor, de ser uma carreira da função pública.

O  Artigo 37.ºdo ECDU (Condições dos concursos) passou mesmo a consagrar:

  1. Os concursos para recrutamento de professores catedráticos, associados e auxiliares são internacionais e abertos para uma área ou áreas disciplinares a especificar no aviso de abertura.
  2. A especificação da área ou áreas disciplinares não deve ser feita de forma restritiva, que estreite de forma inadequada o universo dos candidatos.
  3. O factor experiência docente não pode ser critério de exclusão e, quando considerado no âmbito do concurso, não se pode restringir à experiência numa determinada instituição ou conjunto de instituições.”

É de realçar “a definição de mecanismos de rejuvenescimento do corpo docente que permitam a todos, designadamente aos mais novos, ou aos que estão fora da universidade portuguesa, concorrer aos lugares de topo com base exclusivamente no mérito próprio”, que o diploma se propunha no seu preâmbulo, se bem que na realidade tal não tenha sido cabalmente assegurado, no entanto a obrigação de todos os concursos serem formalmente externos permitiu que durante o período da troika as mudanças entre categorias de professores escapassem aos congelamentos decretados pelas Leis do Orçamento do Estado.

Falecido Mariano Gago antes da constituição do primeiro Governo de António  Costa, era de esperar que o seu antigo Secretário de Estado e presumível herdeiro espiritual  Manuel Heitor se preocupasse com o rejuvenescimento do corpo docente universitário com base no mérito e prosseguisse as políticas do antecessor.

Ora, completando-se os 10 anos sobre a revisão do ECDU o Decreto-Lei que regula a execução do Orçamento do Estado para 2019 veio  introduzir um Artigo 77.º:

Concursos para promoção às categorias de professor associado e catedrático

  1. Até 31 de dezembro de 2019, as instituições de ensino superior podem abrir concursos para promoção de professores auxiliares e associados, até ser atingido o limite inferior de 50 % definido no n.º 1 do artigo 84.º do Estatuto da Carreira Docente Universitária, nos termos dos números seguintes.
  2. Podem ser opositores ao concurso para promoção os professores com contrato por tempo indeterminado com a instituição e que tenham o mínimo de 10 anos de antiguidade na respetiva categoria.
  3. Os concursos só podem ser abertos para área ou áreas disciplinares em que haja mais do que um professor com contrato por tempo indeterminado com a instituição, que reúna as condições para ser opositor, e desde que o conjunto de professores associados e catedráticos de carreira dessa área ou áreas disciplinares não represente mais de 50 % do total dos professores de carreira.
  4. Os júris dos concursos são compostos maioritariamente por individualidades externas à instituição de ensino superior.
  5. O concurso de promoção rege-se, com as necessárias adaptações, pelo disposto nos artigos 38.º e seguintes do Estatuto da Carreira Docente Universitária, em tudo o que não esteja especialmente previsto no presente artigo,

que inverte completamente o rumo de Mariano Gago e cria um esquema de realização de concursos restritos de que nem existe sequer experiência (o concurso interno era anteriormente um concurso admitindo os vinculados à função pública) o qual, retomando a proposta “abandalho-sindicalista” de 20 anos antes, favorece a antiguidade, que volta a ser um posto. A origem da norma não é conhecida, mas diz-se que pode ser imputada aos Reitores, que não querem gastos adicionais com gente de fora. Em todo o caso está assinada por todos os Ministros, incluindo o já conhecido por “Manuel Reitor”.

Os sindicatos – em especial o SNESup e a FENPROF – poderiam solicitar a declaração  de inconstitucionalidade / ilegalidade desta disposição por falta de prévia negociação, mas tudo indica que não o irão fazer. Não é por acaso que, para desvalorizar o alcance da medida, a apresentam como “progressão vertical” em vez de “promoção” e a criticam sobretudo por ser insuficiente. Conhecendo um pouco dos itinerários académicos dos seus actuais dirigentes percebe-se que muitos serão beneficiados. E uma vez que um artigo deste tipo entre no Decreto-Lei sobre a execução orçamental de um determinado ano, é habitual que se reproduza nos seguintes.

António Costa que também assina esta “coisa”, quer carreiras especiais não assentes no tempo de serviço mas sim no mérito? Só para rir.

 

 

Segundo a fórmula consagrada por Mário Leston Bandeira durante o movimento de 1989 a que me irei referir mais adiante.

“A Faculdade de Direito de Lisboa . Os seus primeiros dias. Discurso proferido, em 27 de Maio de 1957, na sessão solene de encerramento do ano lectivo de 1956-1957”.

DL 448/79, de 13-11 e Lei 19/80 de 16-7.

Luís Moniz Pereira veio aqui por  um lado a defender a criação de um “sistema de mérito”, por outro a criticar os quadros piramidais, admitindo até uma pirâmide invertida.

Para que se perceba até que ponto esta questão polarizou a vida sindical, registe-se que o então Presidente da Direcção do SNESup que não conseguiu apresentar lista para as eleições de 2001, chegou a entrar com acções judiciais com vista a impedir a entrada em funções da Direcção sua sucessora e assim poder subscrever o almejado acordo. Felizmente conseguiu posteriormente aceder à categoria de professor associado antes da sua aposentação. Já o representante da FENPROF neste processo acabou, infelizmente, por se jubilar apenas como professor auxiliar.

DL 205/2009, de 31-8.

DL 84/2019 de 28-6, que inclui também uma disposição equivalente para os concursos do ensino superior politécnico, que não será aqui analisada


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