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Sexta-feira, Dezembro 20, 2024

Maradona imortal

Urariano Mota, no Recife
Urariano Mota, no Recife
Escritor e colunista da Boitempo e do Direto da Redação. Colabora também com Vermelho, Carta Capital e Fórum.

Quando soube da morte de Maradona, senti um abalo, que me deixou sem compreender a emoção. Foi como um sentido de perda pessoal, semelhante à perda de um amigo, cuja partida sentimos sempre como uma parte de nós que se vai e se esvai. Maradona, um amigo, que coisa mais contraditória.

E por quê? Havia em mim, como na maioria dos brasileiros, um sentimento de rivalidade por seu brilho, ao qual sempre contrapomos o de Pelé. Maior é Pelé, Pelé é o maior jogador do mundo! O mais brilhante, genial é Pelé, etc. etc. Coisa sobre a qual o coração da gente protesta.

E por quê? Eu e amigos alcançamos uma idade em que a compreensão se torna mais elástica. Isso não é bem condescendência. Talvez seja uma ciência da experiência. Mas no abalo do peito, nos olhos cuja umidade eu reprimia, havia também uma ciência da idade. O tempo que acumulamos nos deixou todos mais emotivos. Vezes há em que de repente embargamos a voz, viramos o rosto de lado envergonhados por cedermos de modo tão imprevisível às lágrimas. E fiquei sem explicação, como um sentimento expresso no soneto de Camões:

“ferida que dói e não se sente;
um contentamento descontente,
dor que desatina sem doer”.

Mas depois compreendi. A razão que o peito agitava é que estava guardada na memória mais que uma absurda rivalidade entre dois gênios do futebol. Maradona era, foi um daqueles atletas fora da alienação política. Ele esteve sempre ao lado da esquerda, contra a corrente, contra o conforto da conformação. Então vi as fotos da tatuagem de Che no seu ombro, a de Fidel na perna esquerda, e suas declarações em defesa de Lula e Dilma, a favor de Hugo Chaves e de Maduro. Nisso residia o meu abalo no peito, a emoção pelo Pibe. Então pude ver sem olhos de rivalidade, então pude ver como um cidadão do mundo o seu belíssimo segundo gol contra a seleção inglesa.

Meu Deus, um craque desses é do mundo, é da confraternização universal, está além da conflagração. Quase há um grito oculto neste gol: “abaixo o imperialismo inglês!”.

E vi, e soube algumas das suas declarações, que o sentimento adivinhou e não sabia:

“Eu não quero que Havelange diga que me quer como um pai. Eu não sou um filho da puta.

Me dei conta depois que as dores de barriga da minha mãe eram porque ela não comia para dar de comer aos filhos.

Eu cresci em um bairro privado de Buenos Aires. Privado de luz, privado de água, privado de telefone.”

Então pude compreender com olhos da razão aquilo que o sentimento viu antes. E mais sereno, agora posso dizer que a morte de Maradona deixa na gente algumas reflexões. No espaço dos seus 60 anos, ele cresceu, amadureceu para o gênio que foi, sofreu e se redimiu no campo com brilho único. E em posições políticas que desejavam mudar o mundo.

E por isso ele se tornou imortal. E procuro esclarecer de que gênero com perguntas do meu romance “A mais longa duração da juventude” num trecho:

“o que faremos da imortalidade? O que plantaremos no lugar do que é efêmero, que retira do próximo fim o seu gozo? Como teremos a saciedade sem a fome? Seria a imortalidade o paraíso sem o seu contrário, uma duração eterna do que é fluido e fugaz? Será como uma estrada que leva a lugar nenhum, uma reta de asfalto infindo sem marcos e placas de cidades?…”

E mais:

“Nós alcançamos a imortalidade, isto é, o que transcende a sobrevivência ao breve, porque a imortalidade não é a permanência de matusaléns decrépitos, nós só a alcançamos pelo que foi mortal, mortal, e sempre mortal não morreu. A imortalidade é isto, o trompete de Louis Armstrong, a voz de Ella Fitzgerald”, o jogo e vida de Maradona.

Ele foi canhoto no campo e fora do campo. Ele foi canhoto por chutar de esquerda e canhoto na política. Canhoto também no que existia de desajeitado, no uso e abuso de substâncias para diminuir a dor. E lembro de Cartola na canção O Mundo é um Moinho. Num dos versos o nosso compositor canta “em cada esquina cai um pouco a tua vida”. Assim foi a sua pessoa e gênio que não cabia em si.

Os jornais falam que Maradona estava ansioso, deprimido e angustiado nos últimos dias. Que a sua esperança era voltar para Cuba, a terra onde recebeu a mais ampla solidariedade e tratamento de hermano para hermano. Mas a última dor chegou antes. Então fica isto, para sempre:

Maradona imortal no futebol, no cidadão político, no homem alto, altíssimo, fora do campo, quando abraçava e amava as referências socialistas. Ele foi mais que um tango. Para mim, mais que um deus. Um homem, enfim.


Texto em português do Brasil


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