A despeito da grande ebulição política e social que vivemos agora, marcada por incertezas e constantes reviravoltas, o março de 2020, para frustração do presidente, não parece vocacionado para o golpe como foi o março de 1964.
Pelo segundo ano passamos pelo aniversário do golpe militar brasileiro, 31 de março, sob um governo favorável à ditadura de 1964. Isso é tão estranho que requer constante reflexão: por que o golpe ainda nos assombra após tantos anos de repúdio, denúncias e de construção da democracia?
A eleição de Jair Bolsonaro ascendeu o sinal de alerta mostrando que o que parecia sepultado está vivo e atuante.
No dia 15 de março de 2020, brasileiros foram às ruas – não muitos, e não se sabe se por causa do coronavírus, que já se espalhava por aqui, ou da popularidade do presidente – manifestarem apoio ao governo. Nas imagens e relatos divulgados na imprensa e nas redes sociais se viu algumas pessoas que ainda pediam uma nova intervenção militar.
Entretanto, a despeito da grande ebulição política e social que vivemos agora, marcada por incertezas e constantes reviravoltas, o março de 2020, para frustração do presidente, não parece vocacionado para o golpe como foi o março de 1964.
O irônico é que hoje, mesmo eleito presidente dentro dos parâmetros da democracia, Jair Bolsonaro flerte com um golpe que visa fechar o Parlamento e o Supremo Tribunal Federal. Ele não quer apenas frear a esquerda, mas sim liquidar qualquer possibilidade de vida política fora do seu raio de influência, seja de esquerda, de centro esquerda ou até mesmo de direita. Talvez sua postura reflita sua própria insegurança quanto a capacidade de se consolidar como um bom governante, mas aí é outra história.
O que interessa aqui é aprender com o golpe de 1964. Neste artigo, particularmente, a ideia é abordar alguns acontecimentos que antecederam o fatídico dia 31.
Há 56 anos os acontecimentos de março representaram o acirramento de uma conspiração que se desdobrava desde 1954, com a pressão militar sobre Getúlio Vargas.
O Comício das Reformas de Base
No Comício das Reformas de Base, na Central do Brasil, Rio de Janeiro, em 13 de março de 1964, o presidente Goulart anunciou as chamadas reformas de base, um programa que envolvia as reformas agrária, bancária, tributária, fiscal e administrativa. O evento reuniu de 150 a 200 mil pessoas. O projeto de Goulart era democrático, com medidas inéditas no país, entre elas desapropriações de terras à margem de rodovias federais e ferrovias; a estatização de refinarias de petróleo; uma reforma educacional, contra o analfabetismo; o controle da remessa de lucros de multinacionais para o exterior; imposto de renda proporcional; direito de voto aos analfabetos, soldados, marinheiros e cabos e a elegibilidade para todos os eleitores.
A reação da direita foi imediata. Houve manifestações oposicionistas em São Paulo e Belo Horizonte, a União Democrática Nacional (UDN) e partidos da direita pediram o impeachment de Goulart e Carlos Lacerda, governador da Guanabara, considerou o comício “um ataque à Constituição e à honra do povo” e o discurso do presidente “subversivo e provocativo”.
Marchas da Família, com Deus, pela Liberdade
Os atos que melhor ilustraram a insatisfação da elite conservadora foram as “Marchas da Família, com Deus, pela Liberdade”, mobilizando setores das classes médias e da burguesia, sob a bandeira do anticomunismo e da defesa da propriedade.
A primeira delas ocorreu em São Paulo, em 19 de março, e contou com a participação de cerca de trezentas mil pessoas, entre as quais Auro de Moura Andrade, presidente do Senado, e Carlos Lacerda. As marchas se replicaram pelas principais capitais, estendendo-se até depois do golpe, quando passaram a ser chamadas de “Marchas da vitória”.
Revolta dos marinheiros
No dia 25 de março de 1964, a resistência dos marinheiros, reunidos na sede do Sindicato dos Metalúrgicos do Rio de Janeiro, intensificou a disputa que dividia o país. Embora a entidade fosse considerada ilegal, dois mil marinheiros e fuzileiros navais liderados por José Anselmo dos Santos, o “cabo” Anselmo, transformaram a comemoração do segundo aniversário Associação dos Marinheiros e Fuzileiros Navais em um ato político. Os marinheiros reivindicavam a legalização da Associação, a melhoria da alimentação a bordo dos navios e dos quartéis, a reformulação do regulamento disciplinar da Marinha e que nenhuma medida punitiva fosse tomada contra os manifestantes.
Em um discurso inflamado, o cabo Anselmo afirmou a disposição da Associação de lutar pelas Reformas de Base. O ato contou ainda com a presença de sindicalistas e líderes estudantis, e além do deputado Leonel Brizola e do marinheiro João Cândido, líder da Revolta dos Marinheiros de 1910.
Aquele evento deflagraria uma série de consequências. Provocado pela ousadia dos oficiais, o ministro da Marinha Sílvio Mota emitiu ordem de prisão contra seus principais organizadores e enviou um destacamento de fuzileiros navais ao local da reunião. Entretanto, segundo o historiador Augusto Buonicore “Os fuzileiros enviados se recusaram a prender os seus companheiros de farda e aderiram ao protesto”. A saída encontrada, três dias após o início da resistência, foi que os marinheiros seriam presos e logo em seguida anistiados pelo presidente. Isso agravou a animosidade que já existia entre a cúpula militar e o governo Jango: “os atos foram considerados humilhantes pela oficialidade, que reagiu com a demissão de Silvio Mota, logo substituído, por ordem de Jango, por um almirante próximo do PCB, Paulo Mário Rodrigues”[1].
Naquele contexto, Goulart foi convidado para a cerimônia de posse da Associação dos Sargentos na sede do Automóvel Clube, centro do Rio de Janeiro, no dia 30 de março. E ele não só compareceu ao evento como discursou voltando a defender as Reformas de Base. Aquele foi seu último discurso.
Sobre aquele evento vale ressaltar que há quem defenda que a Revolta dos Marinheiros foi inflada, na figura do Cabo Anselmo, por agentes da direita infiltrados para apressar a queda de Jango.
O fato é que àquela altura o golpe já estava em curso.
Operação Brother Sam
Horas antes da fala presidencial, a Casa Branca recebera um telegrama do consulado americano em São Paulo, que informava: “Duas fontes ativas do movimento contra Goulart dizem que o golpe contra o governo do Brasil deverá vir nas próximas 48 horas”.
Documentos já em domínio público (e o próprio embaixador Lincoln Gordon admitiu mais tarde) revelam que o governo americano orientou militares brasileiros a, caso houvesse resistência, promoverem uma intervenção. E, para isso, os EUA já haviam preparado o envio de esquadrilha de aviões, navio de transporte de helicópteros, armamentos e todo arsenal bélico em uma operação chamada Brother Sam.
De Juiz de Fora para o Rio de Janeiro
Em 31 de março de 1964 o general Olímpio Mourão Filho, Comandante do IV Exército, resolveu intempestivamente se antecipar ao golpe, marcado para quatro de abril, partindo com suas tropas de Juiz de Fora (MG) para o Rio de Janeiro às três horas da manhã.
Dada aquela precipitação, em 1º de abril de 1964 uma reunião entre Armando de Moraes Ancora, Comandante do I Exército e Amauri Kruel, Comandante do II Exército, com a presença do general de Emílio Garrastazu Médici, decidiu pela união das tropas na deflagração do golpe.
Apesar da ostensiva pressão do Exército, foi no Congresso Nacional que o golpe se efetivou. Auro Soares de Moura Andrade, presidente do Senado, apesar de João Goulart estar no país em plena vigência do mandato, declarou vaga a presidência do Brasil, empossando novamente o presidente da Câmara dos Deputados, Ranieri Mazzilli , como presidente provisório.
No dia 9 de abril de 1964 o Ato Institucional Número Um, ou AI-1, suspendeu por dez anos os direitos políticos de todos aqueles que poderiam ser contrários ao regime, ameaçando com cassações, prisões, enquadramentos como subversivos e expulsões do país. Entre os opositores encontravam-se políticos, sindicalistas, jornalistas, intelectuais, estudantes etc.
O golpe militar impôs um regime alinhado politicamente aos Estados Unidos acarretando uma situação de atraso político, desigualdade social, censura aos meios de comunicação e de violenta repressão que duraria duas décadas.
Duro aprendizado de 20 anos de ditadura
Este é o horizonte de Jair Bolsonaro e contra isso precisamos usar o duro aprendizado de 20 anos de ditadura. Em 30 de março de 2020 o presidente ressuscitou a guerra fria alardeando sobre uma suposta “ameaça comunista”. Mais uma vez ele flertou com o golpe. Sua perspectiva é a de adquirir plenos poderes nacionalmente e subordinar o país aos EUA. E nesta projeção estão guardados aos brasileiros democratas a perseguição política, a censura, o arrocho salarial, o pau-de-arara, o choque elétrico, o afogamento, cadeira do dragão, os desaparecimentos inexplicados, os corpos desaparecidos.
Mas, embora o governo Bolsonaro seja um desastre para o país, a tendência de março de 2020 não foi a mesma de 1964. Hoje, quase um ano e meio depois, vemos que a eleição de outubro de 2018 não se traduz na defesa da ditadura militar e que aquele grupo de manifestantes que pede uma nova intervenção militar não deixou de ser uma macabra excentricidade. Bolsonaro encerra o mês com saldo político no vermelho.
[1] Cabo Anselmo: autópsia de uma traição
Texto em português do Brasil
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