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Domingo, Novembro 3, 2024

Marie-Sophie Laborieux, uma lendária líder negra

Uma entrevista com a idosa negra Marie-Sophie Laborieux, filha de escravo liberto e líder de uma histórica ocupação na Martinica, é o ponto de partida para o premiado romance Texaco, lançado em 2002 pelo escritor francês Patrick Chamoiseau.

No texto a seguir, o professor Jeosafá Fernandez Gonçalves, doutor em Letras pela USP, apresenta o livro – e a figura extraordinária de Marie-Sophie. Confira.

Texaco, de Patrick Chamoiseau

Por Jeosafá Fernandez Gonçalves

Texaco é o nome da favela originada a partir de uma ocupação popular no terreno em que funcionou um dos reservatórios de combustível da multinacional de petróleo, na cidade de Fort de France, Martinica.

Fort de France, por sua vez, não era exatamente uma cidade, mas um forte, como diz o nome, que, construído pelo governo colonialista francês para defender a ilha, cresceu em razão de a outra cidade, a principal, Saint Pierre, ter sido atingida pela explosão de um vulcão que a riscou do mapa por completo, fazendo desaparecer em questão de horas mais 30.000 habitantes.

Nessa favela, Patrick Chamoiseau entrevista a líder da ocupação, a idosa negra, alta e de olhar intimidador, para coletar depoimentos de sua tese de pós-graduação, voltada para a preservação da memória oral e para aspectos da linguagem crioula que, na ilha, rivaliza com o francês oficial.


A líder Marie-Sophie Laborieux, protagonista do romance Texaco: “a idosa negra, alta e de olhar intimidador”


As histórias que essa mulher incrivelmente sedutora tem para contar a Chamoiseau, no entanto, promoverão uma reviravolta nas intenções do estudante universitário, o qual converterá os depoimentos tomados em um dos romances mais importantes da literatura em língua francesa da década de 1990.

Marie-Sophie Laborieux conta sua história e a da luta dos negros na ilha da Martinica desde seu avô, encarcerado e morto sob bárbara tortura, por ter sabotado fazendas escravocratas, no século 19, até o momento em que a prefeitura de Fort de France, em fins do século 20, decide urbanizar a favela Texaco, na qual se refugiou parte da população negra excluída do progresso pós-libertação dos escravos.

A luta de seu avô prossegue na de seu pai, Esternome, que assiste do alto do morro em que mora à extinção fumegante da cidade de Saint Pierre que, calcinada pelo calor e pelo enxofre do vulcão, enterra Ninon, a mulher por quem nutriu um amor vertiginoso e cheio de dor.

Porém, Marie-Sophie Laborieux não é filha desse amor, a ela relatado pelo pai, mas de Idoménée Carmélite Lapidaille, uma cega com quem Esternome vive um amor cheio de carinho e amizade, após emergir emocionalmente da tragédia que vitimou sua Ninon.

A história da Martinica envolve cada palavra desse romance cheio de calor humano e coragem, no qual negros revoltosos, mentôs – os feiticeiros que guardam em seu corpo os mistérios das plantas, dos bichos e da África ancestral –, mulatos aspirantes à ascensão social e brancos escravocratas disputam cada palmo de terra e cada gota de felicidade.

Na dura herança que recebeu do avô, do pai e da mãe, Marie-Sophie Laborieux inclui a luta pela felicidade amorosa. Narra a Chamoiseau, sem meias palavras, os vários homens com quem, desde a juventude e até o momento do depoimento, compartilhou seu belo corpo negro, alto, esguio e cheio de calor.

Porém, tendo se tornado lenda, em razão de sua liderança empedernida na ocupação e defesa da Texaco, apenas um desses amantes – por ironia do destino ou por predestinação de sua história cheia de mistérios enxergadas pelos mentôs – se tornará seu parceiro definitivo, numa época em que seu corpo recebe já os sinais da menopausa: um caçador de monstros marinhos, cujo maior feito terá sido livrar a costa da Texaco de tubarões que impediam a pesca e colher, como prêmio insuspeitado, o coração e o corpo amoroso dessa Marie-Sophie, com todo o mel de doçura que a luta não amargou.

É com esse caçador de monstros marinhos, lendário como ela própria, que Marie-Sofie encerrará seus dias, tendo compreendido com ele que, desta vez, a prefeitura, com seu urbanista mulato não vem preparar uma ação violenta para a desocupação da favela, mas ajudar o bairro crioulo a integrar-se à cidade, mantidas a memória de luta e a arquitetura crioula.

Chamoiseu nos diz isso de forma comovente, e não dirá muito mais, pois um belo dia, retornando à Texaco, encontra mortos Marie-Sophie Laborieux e seu amado caçador de monstros marinhos.


Texto em português do Brasil

Exclusivo Editorial PV / Tornado


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