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Quarta-feira, Dezembro 25, 2024

Na encruzilhada da liberdade

João de Almeida Santos
João de Almeida Santos
Director da Faculdade de Ciências Sociais, Educação e Administração e do Departamento de Ciência Política, Segurança e Relações Internacionais da ULHT

Mário Soares partiu aos noventa e dois anos. Todos partiremos. Mas com ele partiu também um pouco da nossa história recente. E da história da nossa Liberdade. Porque delas foi intérprete e actor privilegiado.Pelas encruzilhadas da História, pela sua coragem e pelo seu talento. Com a sua partida, talvez possamos dizer que se fecha, simbolicamente, uma época. E talvez seja o momento de olharmos, de uma vez por todas, mais para o futuro do que o passado. Em particular, a esquerda…

Um lutador

Podia ter-se resguardado, depois de ter cumprido com sucesso os relevantes papéis que lhe estariam destinados no palco da nossa história colectiva. Até dispunha de uma Fundação muito activa culturalmente onde refugiar-se na reconstrução das suas próprias memórias e de uma sua outra personalidade, que ele cultivava com muito zelo, de pendor mais vincadamente cultural! Mas não! Não se fechou nessas quatro paredes.

Foi muitas outras vezes à luta. E perdeu. Pelo menos, por duas vezes: para a Presidência da República e para a Presidência do Parlamento Europeu. Levantou-se sempre, sem se sentir, por isso, diminuído. Porque era um democrata convicto. Ia à luta e sabia que, em democracia, a derrota e a vitória eram duas faces da mesma moeda. Que a derrota, em democracia, não corresponde ao aniquilamento do adversário, que não é um inimigo. Estava-lhe no sangue. Tinha de estar sempre a mexer. Lá, onde isso significasse agir para além das tarefas simples do quotidiano. Era um político de (e com) vocação. E se essa vocação não lhe estivesse no sangue, essa vontade de estar sempre em movimento, não teria feito tantas coisas que influenciaram decisivamente o rumo da nossa história.

Bem sei que há muitas pessoas que não gostam dele. As feridas da descolonização, muitos adversários políticos directos… Mas é a vida! Ninguém agrada a todos e muito menos durante todo o tempo. Ficarão sempre as obras – quando as houver -, para o juízo final, que é, sim, o da história. O que rezará de nós depois de por cá termos passado. A maioria só fica na memória familiar. Outros nem sequer nessa. Só alguns ficam na memória colectiva, como acontecerá com Mário Soares. Mas isso dá muito trabalho. Parece que não, mas dá. É construir um passado olhando para o futuro. Hipotecando muitas vezes o próprio presente a esse desenho mais vasto e ambicioso. Não ficando prisioneiro dele, dessa sufocante ditadura do presente e do seu, tantas vezes insignificante e danoso, pragmatismo. Sobretudo em política. Construir o futuro é sempre, de algum modo, arriscar…

Um Homem de encruzilhadas

E Soares arriscou, foi preso, tomou decisões incómodas e difíceis, agiu no tempo certo, influenciando decisivamente a história do nosso país. Viveu bem. Noventa e dois anos. Vida cheia. Sim, mas por que razão haveria de viver mal se nunca teve uma vida vazia? Nem sequer havia razões para isso. Do ponto de vista familiar ou profissional. Nem lhe faltava património, inteligência e inquietação para ter uma vida boa. Foi fundador do PS, antes do 25 de Abril, em Bad Münstereifel , coisa que não é de pouca monta. Ocupou todos os cargos relevantes neste País, quando isso implicava algum risco e muita responsabilidade, como quando teve de pedir ajuda externa. Foi à luta. Muitas vezes. Ganhou e perdeu.

Teve muitos problemas no meio de tanta actividade e de tanta confusão. Mas cedo ganhou dimensão para ocupar um lugar no panteão nacional. Porque esteve nas encruzilhadas por onde passava a história de Portugal. Escolhendo sempre o caminho certo, sobretudo quando a crise nos batia à porta. E teve a sorte de ter a Maria Barroso a seu lado. Outra lutadora e mulher de ideais. Nisso teve sorte. Mas as outras coisas conquistou-as. Com coragem. É só lembrarmo-nos da luta pela liberdade antes e logo a seguir ao 25 de Abril.  Depois, para chegar à Presidência da República.

E os problemas difíceis que teve de enfrentar no seio do partido que fundou, o PS. Sei que teria gostado de ser Presidente da Internacional Socialista. E merecia ter ficado ao lado do seu amigo Willy Brandt. Mas não conseguiu. Ou a sorte não lhe bateu à porta. Até porque tinha reconhecidamente mérito para isso. Não foi ele, chegou lá o seu camarada António Guterres. Mas Guterres fez todo o seu percurso em tempo de normalidade democrática e de paz internacional, certamente com estudada oportunidade e evidente talento pessoal.

Mas Soares parece que estava mais talhado para os períodos de crise e de turbulência. E estes, sim, bateram-lhe à porta. Que ele abriu com coragem, serenidade (tanta quanta era possível) e inteligência. E esteve sempre do lado certo, saindo deles com segurança e abrindo portas para o futuro.  Que temos o dever de manter abertas…

Até sempre!

Agora que nos deixou, resta-nos reconhecer que Mário Soares foi um dos nossos, no sentido mais amplo. Representou bem Portugal cá dentro e lá fora. Em momentos cruciais. E até foi o obreiro da entrada de Portugal na União Europeia. Conviveu de perto com nomes grandes do socialismo e da social-democracia, de Willy Brandt a Mitterrand, a Olof Palme. E essa proximidade representou uma enorme mais valia para o nosso País. Mas também porque ele era respeitado nesses círculos de poder da Internacional Socialista.

Deixamos-lhe aqui, por tudo o que fez, o nosso singelo obrigado e dizemos-lhe:

“Até sempre, Mário Soares!”

 

 

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