Ouvi falar de Mário Soares pela primeira vez quando eu era ainda um imberbe, no sentido global do termo: sem nada ainda para raspar no rosto com as lâminas vendidas a 1 escudo nas lojas de Carmona
Ouvi falar de Mário Soares pela primeira vez quando eu era ainda um imberbe, no sentido global do termo: sem nada ainda para raspar no rosto com as lâminas vendidas a 1 escudo nas lojas de Carmona e sem perceber patavina de política enfiado no meu Tomessa, a aldeia em que, à época, era mais fácil saber de Paco Bandeira ou de Trinitá e Bambino que de Spínola, Caetano, Salazar, Américo Tomás e outros da mesma tribo. Um puto a viver na margem leste da política, como era suposto que acontecesse.
O passar dos anos e a persistência do nome Mário Soares nas notícias da rádio e dos jornais eliminou, com a inevitabilidade destes fenómenos, o meu distanciamento da figura do político português. Aprendi a saber dele como uma espécie de ministro vitalício dos Negócios Estrangeiros de Portugal pelo número de vezes que os noticiários o apresentavam como tal, nos meses frenéticos pós-25 de Abril de 74 em que se discutia a descolonização do Ultramar.
Quando me tornei jornalista em 1978, tudo passou a ser mais fácil para mim. Mário Soares não era mais uma figura afastada da política mundial para passar a ser, incontáveis vezes, protagonista de notícias que eu mesmo escrevia. E segui-o ao longo dos anos, testemunhando a sua omnipresença no espaço da política pública portuguesa, até vê-lo em Belém, prova de que o homem não era dos que desistiam facilmente. Aliás, era mesmo dos que não desistiam nunca, como me pareceu confirmar naquele temerário passo em 2006 quando tentou um regresso à cadeira presidencial aos 81 anos de idade.
Já então eu era um pai com filhos atentos ao mundo à volta, capazes de discutir o grandioso e o ridículo das notícias dos telejornais. Lembro-me que com a minha filha mais velha, então com 10 anos, rimo-nos à brava à conta daquele momento da política doméstica na antiga Metrópole, não pela teimosia dos 81 anos arrastando-se pelo ópio do poder, mas pelos números da copiosa derrota eleitoral.
Na verdade, o tempo deu-nos razão quanto à lucidez do político, a demonstração de que não há nada científico que desqualifique um ancião aos 81 anos para a aptidão dos desafios da política. Os debates em que se envolveu depois, as polémicas, mas sobretudo a garra e a paixão com que continuou a defender o que tinha como ideias e princípios, lembrando a energia dos tempos imediatos ao exílio em Paris, a chegada triunfal a Santa Apolónia e dezenas de outros episódios de Mário Soares cinquentão, provaram que havia ali neurónios para uma longevidade de privilegiados, lembrando muito – se a comparação não ferir ninguém – Fidel Castro com o seu combate inflexível pelas ideias, no distante Caribe.
Em Angola, Mário Soares foi suficientemente conhecido, muito mais até, se calhar, do que teria desejado ser.
Sobre o seu desempenho na descolonização, foram na verdade os retornados que o cobriram com o ódio de estimação que todos os grandes têm de ser capazes de fazer emergir para ganharem lugar na História. Por cá, em síntese Mário Soares foi só mais um que se envolveu nas conversações de Alvor, aqueles acordos que não deram em nada!
A figura com presença no imaginário é a outra, a recente, o Mário de apelido “Bochechas” e poucas vezes Soares, devido às amizades que escolheu e às opções que fez. Escolheu aliados controversos como Rafael Marques, que exibiu como “poeta de talento” e “grande esperança da política angolana no futuro” sem que os angolanos, do lado de cá, percebessem a quem o estadista se andava a referir; declarou-se amigo incondicional de Jonas Savimbi, o líder da UNITA, e isso foi o suficiente para o afastar dos amores palacianos de Luanda, seus arredores e mais de meia Angola. As simpatias, se as gozou, foram garantidamente num único ponto da geografia angolana, Jamba, o bastião onde se escondeu o amigo Savimbi para fazer a guerra pelo poder que estranhamente os aproximou.
Por estes lados, Mário Soares foi fracturante, distanciou Luanda de Lisboa como poucos o conseguiram. A sua morte, porém, é um daqueles fenómenos que só a cultura africana consegue enquadrar: depois que um homem faz a transição para o Além, depois que um ser humano parte para se juntar a Nzambi-A-Mpungu (Deus, nas línguas bantu), vê-se limpo de todos os defeitos; não há críticas que possam cobrir a sua existência terrenal!
O autor escreve em PT Angola