O mais marcante dos meus encontros com Mário Soares deu-se quando ele estava numa das mais difíceis situações políticas que atravessou.
Pouco depois, o grande mestre Agostinho da Silva contava-me, em deliciosa conversa, como tinha sido professor do imparável jovem irrequieto filho do fundador do Colégio Moderno.
Em meados de 1985, as sondagens para as “presidenciais”, marcadas para o final do ano, davam a Mário Soares uns 7%, bem atrás dos candidatos Freitas do Amaral, Salgado Zenha e Lourdes Pintasilgo. Isso, porém, em nada diminuía a sua vontade de se bater e a sua confiança na estratégia que traçara para ganhar apesar de toda a adversidade.
Com um grupo de dirigentes e ex-dirigentes estudantis, fui recebido por Mário Soares, na sede da candidatura no Saldanha, para lhe comunicarmos a nossa decisão de o apoiar (apesar dos 7% que o colocavam em último lugar dos quatro candidatos com hipóteses de vitória…) e dar-lhe a conhecer o nosso manifesto de apoio.
Soares leu atentamente o texto que explicava as razões pelas quais considerávamos ser a sua a única candidatura capaz de assegurar a Portugal democracia e desenvolvimento e que nos levavam, como dirigentes e ex-dirigentes do movimento estudantil, a apelar ao voto na sua candidatura presidencial.
Discutiu o texto connosco, mas sem questionar sequer uma das suas vírgulas, gostou claramente do que leu e da conversa, explicou-nos as linhas gerais da sua estratégia para passar à segunda volta e depois derrotar Freitas, quis saber como podíamos ajudar na campanha e, por fim, mandou chamar o Zé Lamego para ficar como nosso interlocutor permanente.
À saída, já no corredor, pegou-me no braço e baixando a voz disse-me: “tens a noção de que estamos numa posição muito difícil e que vai ser necessário trabalhar muito bem para ganhar…”. Disse-lhe que sim e percebi que isso o tranquilizou. Despedimo-nos e, quando saíamos do edifício, era nesta atitude de imensa seriedade política de Soares que vinha a pensar. O velho “Monte Carlo” era ali mesmo ao lado e foi aí que fui, com outros dos presentes na reunião, beber um café e falar sobre a imensa nobreza desta atitude de Soares.
Quando, mais tarde, o contei a Agostinho da Silva, o mestre riu-se e comentou “ele é mesmo isso”, explicando-me que o tinha conhecido muito bem depois do velho João Soares lhe ter pedido que se ocupasse da educação daquele “jovem irrequieto e inquieto”.
Tempos depois desta conversa, vou à casa do mestre no nº 7 da Travessa do Abarracamento de Peniche e deparo-me com uma passadeira vermelha que, escadas acima, ia da porta do prédio até à porta do apartamento de Agostinho da Silva. “Mestre, temos passadeira vermelha?!”, perguntei à entrada. “O Mário Soares quer dar-me uma medalha e, como eu não a ia buscar, ele resolveu vir cá trazê-la”. E voltámos a falar da “educação do jovem irrequieto e inquieto”
“Ele tinha muita energia e detestava ficar sentado a ouvir falar de biologia, por exemplo. Por isso, púnhamo-nos a andar por Lisboa e mostrava-lhe a biologia ao vivo, nos pássaros, nas árvores… E ele entusiasmava-se. Ele tinha razão. Por que havemos de fazer um discurso com muitas palavras sobre o que é um vale, se bastar ir à janela e mostrar o que é um vale…?”
O mestre, que há anos partiu, tinha razão, claro. E tinha um sorriso luminoso ao contar-me esta história. O seu brilhante aluno partiu, agora. Talvez se voltem a encontrar algures e voltem a dar grandes passeios juntos.