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Sexta-feira, Novembro 1, 2024

Mário Soares e a religião (Também? Também!)

Alexandre Honrado
Alexandre Honrado
Historiador, Professor Universitário e investigador da área de Ciência das Religiões

Li nos últimos dias muitos comentários relacionados com a figura de Mário Soares e nenhum conseguiu alterar a memória espantosa que tenho do Estadista, do Homem, e do Inspirador

Alguns desses comentários vieram de líderes religiosos, quase todos unânimes em reconhecê-lo como um excecional defensor das religiões na construção da Paz. Poucos foram os que tentaram denegri-lo neste campo. E os que o fizeram são os do costume.

Os que se sentiram lesados pela frontalidade, nomeadamente quando foi dos poucos com coragem de dizer em voz alta muitas coisas que sabíamos – e que por estranho pudor temíamos denunciar. Esses “comentaristas” (de débil rede social) sabem que não contam, mesmo em bico de pés ressabiados (embora se aconselhe cuidado com o seu ranço, capaz de contagiar distraídos e ignorantes e gerar doença prolongada de efeitos nefastos e leituras agoniantes). Não são nem opinião pública nem opinião publicada. Nem chegam a ser, se formos a ver bem.

Só nos últimos anos, a ideia política que temos sobre o mundo religioso se apaziguou (no entendimento que dela fazemos no nosso território, é claro). As religiões menos conhecidas, por exemplo, não eram reconhecidas no nosso País – e eram rotuladas com o chavão fácil de “seitas”. Algumas estruturas que se apresentavam como estruturas de crença religiosa, eram impunes manipuladoras da ingenuidade dos seus crentes. As histórias, as queixas-crime, as denúncias, as vidas arruinadas cresceram em listas de tamanho considerável.

Lembro-me das ameaças de que nós (jornalistas) fomos alvos – algumas dessas ameaças levadas longe de mais, com atentados à vida e à integridade de alguns de nós. Isto acontecia sempre quando o tema religião era abordado, quando a investigação trazia a lume excessos que nada tinham de religioso, quando se mostrava que havia de separar-se trigo e joio e que o que era fraude nada tinha a ver com o espiritual ou o religioso, que, em contrapartida, dignificam o homem e lhe trazem elevação.

Hoje há uma claridade, uma transparência muito grande – e a alguns laicos e ateus, desassombrados, se deve esse caminho aberto para a Liberdade Religiosa.

É urgente, de igual modo, que não se ceda nem um ponto nessa liberdade. Se não o fizermos, ainda podemos correr o risco de ver um grupo qualquer de assassinos a brandir armas, chavões e frases feitas, no nosso território, fingindo trazer o regaço cheio de fé, onde as rosas são bombas e os interesses mero capitalismo desvairado.

Quando, na morte de Mário Soares, os líderes religiosos foram convidados a falar sobre ele, as respostas foram massivas, imediatas, unânimes. A iniciativa partiu de Paulo Mendes Pinto, diretor da área de Ciência das Religiões da ULHT, e o resultado foi transcendente mas não surpreendente: a memória coletiva dos diversos setores religiosos respondeu, em peso, e na mesma direção.

É que, também na área das Religiões, Mário Soares desempenhou um papel excecional, tão bom qua ainda hoje agita carpideiras de vão de escada e faz soltar o aplauso daqueles que, em matéria de opinião, foram construtores de um pedaço de liberdade, a religiosa, de que só nos devemos orgulhar. Da comunidade islâmica à fé bahá’i, de católicos a muitas outras formas cristãs de culto, de pagãos a ateus, as respostas chegaram-nos de uma forma bem explícita.

Em 2007, Mário Soares foi indicado para presidir à Comissão da Liberdade Religiosa, criada pela Lei 16/2001 e seria reconduzido no cargo em 2011 no qual sucedeu ao conselheiro Menéres Pimentel, por decisão do Conselho de Ministros de 28 de junho de 2007.

A nomeação do Dr. Mário Soares causou alguma surpresa, que se desvaneceu com o tempo.

Não há talvez quem trabalhe melhor os temas religiosos e que queira aprofundar as suas características com mais empenho do que um laico – Soares sempre disse que o era. Ainda para mais, Republicano. Soares era herdeiro direto da I República, dessa que entrou em conflito aberto com a religião católica – uma luta política e mais do que simbólica, opondo liberais e restauracionistas, monárquicos e republicanos, ateus e igreja católica e os diferentes modos liberais de entender a «liberdade dos modernos».

Não era uma luta contra os povos – a pequena minoria que correu a Fátima em 1917 não foi perseguida pelos republicanos, embora alguns quisessem impor ao “fenómeno” algum didatismo. Os livres pensadores, os carbonários, os mações, os socialistas, viam com outros olhos o equilíbrio que desejavam para o futuro.

O mais interessante de todos, Afonso Costa, chegou mesmo a preconizar um País sem religião e um mundo “livre dela” em pouco tempo. Ao contrário do que se possa pensar, a República acatou o culto religioso plural, recebeu de volta judeus que a história tanto perseguira, incentivou até as missões e o seu trabalho, nomeadamente, nas colónias.

Essa República ensinou muito aos vindouros – e os vindouros que fizeram o Dezembrismo de Sidónio Pais, a República Nova e o Estado Novo (em especial a partir dos anos 30) só podiam desdenhar dessa amplitude.

Ainda hoje alguns dos seus netos choramingam no canteiro do saudosismo a vontade imperial, colonial e repressiva, de uma sociedade sem liberdades, sem pluralismo e sem crítica (ficando por sombrios juízos de valor, que nos aparecem como imensos disparates, apenas aplaudidos pelos menos preparados e incultos).

Até praticamente aos finais dos anos de 1980 não foi grande o interesse pelo estudo da questão religiosa em Portugal. O que havia era uma muito parcial história da Igreja, e, assim sendo, uma história da Igreja Católica, ao lado dos argumentos esporádicos desejosos de anatematizar os excessos do racionalismo moderno e das ideias liberais, democráticas e socialistas. Essas vozes procuravam justificar a política recatolicizadora levada a cabo pelo Estado Novo. É fácil de concluir que só se pretende recatolizar o que deixou, pela dúvida, de ser católico.

Mas a questão de fundo estaria nos anos decorrentes com a legitimação do homem religioso – que as ideologias mais extremas procuram sempre esconder das suas evidências.

Hoje, felizmente, temos liberdade religiosa. Porque Mários Soares e muitos com ele se bateram, se batem, para que possamos ter, orgulhosamente, religião – ou simplesmente, com igual orgulho, termos o prazer de não a ter.

Soares, Republicano e Laico, era ainda Socialista. Na grande família socialista há religiosos – de todas as convicções – e alguns bem conhecidos. Essa é a sua herança Humanista de maior qualidade.

Li nos últimos dias muitos comentários relacionados com a figura de Mário Soares. Todos os que se prendiam com a religião enfermavam de falta de liberdade, de quem os proferia, prisioneiros, escravos da sua argumentação ofensiva e redutora. Isso apenas prova que há muito ainda por fazer e que o exemplo de Mário Soares, também nesse campo, deve ser respeitado – e continuado, de forma viva e exaltada.

Este artigo respeita o AO90

Nota do Director

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