Aquilo que se está a passar em Mariupol transcende por isso o rasgar de todos os princípios da Carta das Nações Unidas: é o regressar ao que de pior se passou em matéria de crimes contra a humanidade durante o século XX.
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Memórias
Mariupol, cidade que resistiu à invasão russa de 2014, era naturalmente vista como um ponto de tensão nas eleições locais do Outono de 2015, mas por decisões que me ultrapassaram, foi a partir de Zaporizhia que assumi o controlo da missão de acompanhamento eleitoral promovida pela ‘Fundação para a Democracia e a Boa Governação’, tanto na cidade de Zaporizhia como na de Mariupol, cidade onde um grupo de quatro colaboradores, dirigido por uma jovem sérvia, ficaram de acompanhar ‘in situ’ o acto eleitoral.
Em Zaporizhia, os principais sinais da guerra faziam-se sentir nos grandes campos de refugiados com equipamentos pré-fabricados oferecidos pelas autoridades alemãs. As eleições realizaram-se, contudo, com normalidade, sem qualquer manifestação de violência.
Numa das mesas de voto por onde passei, um velho veterano de guerra em uniforme soviético tinha resolvido manifestar a sua intenção de não participar em eleições de um país que não reconhecia, reivindicando a sua cidadania soviética. O ancião saiu do recinto eleitoral da mesma forma como entrou, perante a indiferença geral. As nossas equipas não registaram irregularidades ou qualquer forma de pressão, numas eleições que confirmaram o resultado das sondagens.
Em Mariupol, as eleições foram anuladas na véspera da sua realização, na sequência de uma acesa troca de acusações entre as duas principais forças em presença relativas a fraude na impressão dos boletins de voto, tendo o Presidente Poroshenko na altura declarado a sua intenção de as vir a promover a 15 de novembro do mesmo ano.
Pelo relato que me foi feito pela equipa de observação de Mariupol, regressada a Zaporizhia, a situação era completamente diferente da vivida nesta segunda cidade. Estava-se em clima de quase guerra civil, com múltiplas acusações de suborno, pressão e fraude num clima de confronto quase total.
As eleições iriam ter finalmente lugar no dia 29 de novembro em Mariupol, mas com pena minha a Fundação acabou por cancelar a missão nessa data. Dos relatórios publicados pelas instituições que seguiram as eleições nesse dia ficou clara a impressão de que o clima de tensão tinha persistido.
Em Dnipropetrovsk, onde estive a 15 de novembro por altura da segunda volta das eleições locais, a tensão era também evidente, chovendo as acusações de colaboracionismo com a Rússia do candidato que venceria as eleições, num clima geral de confrontação, que eu não senti em Zaporizhia ou em Kyiv.
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O quadro nacional
A tumultuosa revolução ucraniana que depôs o presidente Yanukovych em 2014 deu-se na sequência da cedência deste ao ultimato de Moscovo para que voltasse atrás na sua aceitação do acordo de associação com a União Europeia, ou seja, foi uma revolução contra a tutela de Moscovo sobre o país.
Localizada no meio da Europa, palco de múltiplas disputas imperais e desenhos de fronteiras, a Ucrânia contemporânea foi extremamente marcada pela contestação à dominação russa. Tendo obtido a independência no final da primeira guerra mundial, a Ucrânia viu a sua independência esquecida pelo Tratado de Versalhes, o que abriu a porta à conquista soviética e à sua integração nesta como república, apenas nominalmente autónoma, em 1922.
A rebelião independentista manteve-se, contudo, até aos anos 1930, tendo apenas sido vencida pelo Holodomor – o genocídio estalinista pela fome – que desertificou vastas áreas do país que viriam a ser recolonizadas por habitantes de outras partes do império (fundamentalmente da Rússia), sendo que a rebelião voltaria a renascer durante a segunda guerra mundial e arrastar-se-ia até aos anos 1950.
O mapa da Ucrânia seria substancialmente alterado na sequência da segunda guerra, com alguns territórios a passar da Polónia à Ucrânia e outros da Ucrânia à Rússia ou à Moldávia, novo membro da URSS. Em 1954, a Crimeia passa da república russa à república ucraniana.
Grande parte da população ucraniana é russófona – é o caso, por exemplo, do seu presidente actual – especialmente a Sul, território que passou do domínio turco a russo no século XVIII, bem como a Leste.
Como eu pude verificar em Zaporizhia, a maior parte da população local era russófona, como também eram russófonos os habitantes dos campos de refugiados da cidade que tinham fugido do assalto russo ao Leste do país, o que, por si só, servia para entendermos que a russofonia, ou qualquer outra forma de identificação étnica, não pode ser confundida com vontade de ser anexado pela Rússia.
Quando mais tarde voltei à Ucrânia, no quadro da cooperação com a Associação de Estudos Ucrânia-Europa – de que o presidente na altura era também ele russófono e originário do Donbass – entendi até que ponto a língua não é um critério decisivo para entender as aspirações ucranianas à plena autodeterminação e a recusa da sua subjugação a Moscovo.
Em qualquer caso, a língua em particular e a cultura em geral eram certamente factores que, à partida, aproximaram uma parte do país à Rússia – e que terá provavelmente estado por trás da queda da Crimeia sem resistência – mas esses factores acabaram por se esbater, ou mesmo desaparecer, com a barbaridade com que as forças imperiais russas trataram os ucranianos na presente invasão.
A esse propósito, convém lembrar que Zelensky foi eleito na base de um programa que pretendia resolver a guerra com Moscovo, tentativa que, como sabemos, foi frustrada pela completa falta de vontade do Kremlin de encontrar qualquer solução que não fosse o domínio total sobre a Ucrânia.
A afirmação contemporânea da nação ucraniana parece-me assim ser antes do mais a resposta ao desbragado imperialismo russo-soviético e tornou-se tenaz perante a desumana agressão de que a Ucrânia foi alvo, agressão que destruiu, ou em qualquer caso secundarizou, os óbvios laços históricos, linguísticos e culturais existentes entre os dois países.
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O massacre putinista
O esforço putinista de desestabilização da costa ucraniana do mar de Azov, especialmente das suas duas principais cidades, Mariupol e Berdyansk, prosseguiu depois das eleições locais de 2015, quer através de bombardeamentos quer através dos seus agentes locais, levando-me a prever – em artigo que publiquei em junho de 2016 no Diário dos Açores – uma nova invasão da Ucrânia com o objectivo de conquistar toda a costa do mar de Azov, ligando por terra a Rússia à Crimeia.
Como sabemos, a nova invasão acabou apenas por ter lugar em 2022 e tendo objectivos muito mais vastos, que aparentemente compreendiam os da anexação da totalidade do país. Em qualquer caso, e como me parecia ser inevitável, Mariupol foi e continua a ser o principal alvo da agressão putinista.
Na altura em que escrevo, as forças ucranianas continuam a resistir num reduto situado na siderurgia da cidade, tendo a maior parte da população sido massacrada, raptada para campos de triagem, ou ainda conseguido escapar para a parte não ocupada da Ucrânia.
Os habitantes de Mariupol têm sido disseminados um pouco por todo o território russo, sendo mesmo alguns enviados para a ilha de Sacalina no Pacífico, numa política que tem claramente o objectivo de eliminar a identidade ucraniana dos habitantes de Mariupol, ou seja, corresponde literalmente à definição dada pela legislação internacional a ‘genocídio’.
Putin está aqui a repetir rigorosamente a política de Estaline de genocídio das populações que lhe resistiram. Foi isso o que fez, por exemplo, com inguches e chechenos no final da segunda guerra mundial, deportados para o Cazaquistão e Quirguistão de onde só foram autorizados a regressar por Nikita Khrushchev.
Aquilo que se está a passar em Mariupol transcende por isso o rasgar de todos os princípios da Carta das Nações Unidas: é o regressar ao que de pior se passou em matéria de crimes contra a humanidade durante o século XX.
E é por isso que em caso algum podemos esquecer Mariupol. E é por isso que esta guerra é a guerra da civilização contra a barbárie, e que é essencial apoiar a Ucrânia.