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Quinta-feira, Novembro 21, 2024

Matilde e a pílula da morte – o capitalismo e a era dos ciclopes

Carlos de Matos Gomes
Carlos de Matos Gomes
Militar, investigador de história contemporânea, escritor com o pseudónimo Carlos Vale Ferraz

O caso do medicamento da bebé Matilde, que os técnicos julgam poder melhorar de uma doença rara se for utilizado um medicamento de que uma empresa americana detém o registo da patente e que apenas vende a troco de 2 milhões de dólares, ficará como o marco da indignidade fundamental de um sistema que só salva a vida de um bebé a troco de um resgate de 2 milhões de dólares. E esta empresa parece que está cotada nas grandes bolsas do capitalismo com acções muito lucrativas!Alexander Fleming, médico, microbiólogo e farmacologista britânico, notabilizou-se como o descobridor da proteína antimicrobiana lisozima, e da penicilina, obtida a partir do fungo Penicillium notatum, esta em 1928, há noventa anos. Fleming trabalhou no Hospital de St. Mary, Londres. Durante a Primeira Guerra Mundial foi médico militar nas frentes de batalha da França e ficou impressionado pela grande mortalidade nos hospitais de campanha causada pelas feridas de arma de fogo que resultavam em gangrena gasosa. Regressou ao Hospital St. Mary e procurou um novo anti-séptico que evitasse a dura agonia provocada pelas infecções durante a guerra.

Chegou à descoberta da penicilina ao observar uma cultura de bactérias do tipo estafilococo. Publicou os resultados desses estudos no British Journal of Experimental Pathology em 1929. Mas Fleming não patenteou sua descoberta, pois entendeu que assim seria mais fácil a difusão de um produto necessário para o tratamento das infecções.

Conhecemos a importância da descoberta da penicilina para a medicina, que deu inicio à chamada “Era dos antibióticos”.

Hoje estamos na era dos abutres, das hienas. Na era dos ciclopes da medicina, da indústria farmacêutica, dos monstros que chantageiam os doentes e os frágeis. Estamos na era dos ciclopes, dos monstros de um só olho, a do lucro sem qualquer limite moral.

A raça dos ciclopes foi retratada nos poemas de Homero, na antiguidade grega, como constituída por gigantescos e insolentes pastores fora da lei, que habitavam a Sicília, a pátria da Máfia moderna, recorde-se. Os ciclopes não trabalhavam a terra, preferiam invadir os terrenos cultivados e assaltar rebanhos. Homero registou que, por vezes, comiam até mesmo carne humana. Como os actuais ciclopes da medicina e da farmácia. Por este motivo eram considerados seres sem leis ou moral.

Aqui em Portugal as greves dos médicos e enfermeiros à babugem dos tempos pré-eleitorais, propícios à chantagem, revelam como a moral e ética estão arredados do exercício da actividade destes novos mercadores da vida dos seus semelhantes.

O capitalismo utiliza hoje a saúde dos humanos como os ciclopes utilizavam na mitologia as forjas onde fabricavam as armas para os seus deuses, como uma arma para obter lucro. A produção e venda de medicamentos é hoje, um negócio de patentes. Devia ser um serviço público. Um bem público. Em 90 anos passámos da generosidade e consciência social de Fleming e da penicilina sem patente ao Zolgensma apenas disponível nos EUA, um bem exclusivo de uma empresa, um factor de lucro no farol do capitalismo, do império do mercado. Da barbárie, se pensarmos um pouco.

O caso do medicamento da bebé Matilde, que os técnicos julgam poder melhorar de uma doença rara se for utilizado um medicamento de que uma empresa americana detém o registo da patente e que apenas vende a troco de 2 milhões de dólares, ficará como o marco da indignidade fundamental de um sistema que só salva a vida de um bebé a troco de um resgate de 2 milhões de dólares. E esta empresa parece que está cotada nas grandes bolsas do capitalismo com acções muito lucrativas!

Numa reportagem, um médico de uma organização de apoio sanitário na Síria, confessou que chorou quando uma criança ferida na consequência da guerra de desestabilização que o “império” de que somos dependentes desenvolve no Médio Oriente lhe pediu um medicamento não para tratar das feridas, mas para lhe tirar a dor da fome.

O laboratório do Zolgensma fabrica fome, vive da fome, e não fabrica remédios para crianças com fome.

A normalidade com que hoje aceitamos as invasões dos ciclopes da saúde, aqui em Portugal, com as greves imorais e no farol do capitalismo, a América grande outra vez, através dos “comerciais” da empresa que só fornece o medicamento que pode salvar a vida de um bebé a troco de 2 milhões de dólares, porque “registou a patente”, é a imagem do estado de podridão a que chegou o capitalismo.

Contra estas infecções não há penicilina nem Fleming que consiga salvar a civilização em que ainda vivemos. A morte, a necrose, é o fim de um sistema imoral, que deixou de ter defesa.


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