Um documento disponível no portal do governo apresenta o conjunto de medidas decididas para enfrentar o aumento dos preços energéticos e agro-alimentares refere, no seu enquadramento, as consequências e os impactos que o aumento nos custos da energia e de bens agro-alimentares e a disrupção das cadeias de abastecimento (já sentidas desde o início da pandemia COVID-19) terão no abrandamento da recuperação económica.
Fixa quatro objectivos – proteger as famílias e as empresas, garantir a coesão social e o crescimento económico – distribuídos por quatro eixos – contenção dos preços da energia, apoios à produção e às famílias e a aceleração da transição energética – relativamente aos quais propõe medidas como uma redução do ISP equivalente a uma redução do IVA para 13% e uma limitação dos lucros inesperados e extraordinários das empresas geradoras de electricidade, com as quais se propõe influenciar a contenção dos preços da energia.
Nas restantes, e no capítulo dos apoios às famílias e à produção aparecem elencados os habituais apoios sociais e as reduções ou flexibilizações fiscais, com efeitos mitigados ou até polémicos (pela transitoriedade e pelo agravamento que poderão representar em termos do endividamento público), enquanto no eixo da aceleração da transição energética sobressaem medidas como a agilização de licenciamentos para a instalação de painéis solares ou a simplificação dos procedimentos relativos à descarbonização na indústria, que poderão apresentar efeitos, mas apenas a médio ou longo prazo.
Ressaltarão sempre, até pelos seus efeitos mais imediatos, as medidas que se traduzam na redução do preço final a pagar pela energia, embora seja de lembrar a sua transitoriedade e o seu pronto desaparecimento logo que os preços registem ajustes em baixa. Já a referência a uma limitação dos lucros extraordinários das empresas do sector energético merece observação mais cuidada, especialmente depois das afirmações do ministro da Economia, António Costa Silva, na Assembleia da República sobre a possível consideração de um imposto especial, tanto mais que, apresentada como uma ideia a “negociar” com as empresas, esta dificilmente será concretizada na prática, mesmo sabendo-se que já está em aplicação noutros países europeus.
Por cá, “português suave” oblige, continuamos a falar nisso e até assistimos a compungidos comentários de ex-governantes lembrando que o “pobre” sector energético nacional já sofre com um imposto extraordinário ou a tentativas de desvio das atenções quando se admite que o tecto ao preço do gás da proposta ibérica dispensa imposto extra a eléctricas, quando fica por explicar a verdadeira natureza de um imposto deste tipo, que na terminologia anglo-saxónica é designado por “windfall tax”, assim reflectindo a sua origem não expectável.
A simples análise da origem do conceito de lucro inesperado (algo que sucede fora do quadro expectável da actividade económica e empresarial) deveria remeter o debate para uma dimensão mais justa e adequada, ou será que é só o cenário de uma guerra “inesperada” que gera lucros extraordinários em sectores específicos da economia? Não existirão outros acontecimentos inesperados que, no passado e no futuro, originarão lucros excepcionais nuns sectores económicos a expensas dos restantes? Que outra designação e origem poderemos dar aos lucros das farmacêuticas originados pela Covid-19?
Serão afinal os lucros extraordinários algo assim tão anormal? E se não, porque há quem agora chore lágrimas de crocodilo?
Para tentar facilitar a visualização do problema pensemos um pouco na fundamentação de qualquer regime fiscal sobre os lucros das empresas. Neste parece consensual a aplicação de uma taxa de imposto sobre os lucros calculados após a dedução de custos e margens, acrescidos da remuneração do capital investido; sobre este lucro tributável é então aplicada uma taxa de imposto a que acresce uma taxa extra, variável em função do volume daqueles lucros.
Embora esta taxa extra seja já uma forma de onerar os grandes lucros, não tem em linha de conta qualquer carácter de aleatoriedade na actividade económica e ainda menos a de acontecimentos extraordinários (guerras, pandemias, cataclismos), do mesmo modo que a taxa normal não tem em linha de conta os ciclos económicos nem as variações do risco medidos pela taxa de juros das obrigações do tesouro (padrão habitualmente usado para estimar o nível de risco das actividades económicas), mostrando-se rígido às variações conjunturais daquela taxa e levando a uma subida anormal do diferencial entre as taxas de lucro empresarial, normalmente praticadas e aceites, e a taxa da aplicação sem risco em períodos (como o que recentemente temos vivido) de taxas baixas das obrigações do tesouro.
Visto numa perspectiva puramente financeira e de comparação entre taxas de risco, existe uma considerável diferença entre 20% de lucro quando a taxa das obrigações do tesouro se situarem nos 5%, ou quando estas se quedam em 1%, facto não contemplado no actual regime fiscal e que justifica a ideia que a taxação dos lucros excessivos deveria ser algo indispensável e que nunca ser considerado como extraordinário.