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João de Sousa

Quinta-feira, Novembro 21, 2024

O medo paira…

medo

 

Quando engravidei pela primeira vez, em plena guerra colonial, não havia ecografias nem epidurais.

“Rezei” para que fosse uma menina para não ir para a guerra. Fui até comprar, a correr, roupinha cor de rosa.

Nasceu um rapaz.

Foi um misto de felicidade e de medo. A guerra não me saía do pensamento.
O 25 de Abril e a descolonização trouxeram-me a Liberdade e a paz de espírito. O meu filho não iria combater.

(Como gosto da “Ronda do Soldadinho“, do Zé Mário Branco, do tempo do GAC…)

Agora, aqui onde me encontro, sinto medo. Puro e duro. Não sei viver assim.
Estou de passagem, nada me prende aqui, excepto a minha gente.
Em breve, vou embora. apanho um avião, tenho uma casa para onde voltar, tenho uma vida organizada, calma e sou livre.

As pessoas com quem aqui me relaciono começaram a ter medo! São expatriados ou nacionais de classe média mais e menos alta. Alguns bem “posicionados”. Movem-se rápida e velozmente entre casa e emprego, tentando escapar a esta onda de assaltos e violência. Para os “bandido” a vida humana vale zero e o crack abunda.

Evitam idas ao centro da cidade.
Há muito que as autoridades tinham um alerto vermelho preparado (garantem-me), mas tardaram a executá-lo.

Foi precisa uma sequência de assaltos, especialmente numa zona nobre da cidade, Talatona para que isso acontecesse. Sei que, em pelo menos dois casos, havia familiares de deputados/ministros envolvidos. Faz a diferença…

talatona
Talatona, zona nobre da cidade

Nesse fim-de-semana, a cidade foi inundada de polícia, com fardas de todas as cores, até os temidos “ninjas”, força de intervenção. Câmaras, acção…

Vi mulheres polícia calçadas com sabrinas, à beira da estrada, mas vi outras com sapatos de atacadores à porta do Candando.

Os “bandido” escolhem mulheres sozinhas, topam o bruto carro, a carteira de marca, o bom corte do trajar, mas muitas, sobretudo as nacionais não se contêm e persistem na ostentação. Aqui, o estatuto pesa. E rende!

Os mais inteligentes, os mais sabidos, resguardam-se. Vão para casa mais cedo, não têm rotinas, escolhem percursos alternativos, etc.

 

E o medo é contido quando chegam ao conforto/luxo das suas casas com ou sem piscina, rodeadas de muros e arame farpado, com cães (os “bandido” têm medo deles), dentro ou fora de condomínios privados, rodeados de segurança.

Passados muros e barreira de segurança, à porta de uma das melhores e mais caras escolas, agora com maior número de alunos nacionais (ou porque os expatriados já partiram ou porque já não têm condições para a pagar), desembarcam meninos vestidos com roupas, sapatos, mochilas, etc., tudo de marca, de jeeps e carros potentes, com vidros fumados, alguns até blindados. Sempre a acompanhá-los ou os pais e o segurança ou o motorista com o segurança e com a nanny de farda branca.

Meninos tristes. Não podem ostentar tanta abastança extra-muros…

Os nacionais, fora os privilegiados, a grande maioria vive muito mal, ganha uma miséria e tudo está caro. Há áreas da administração pública onde falham salários há meses. Transportam-se em candongueiros e são também assaltados, mesmo à entrada dos bairros onde vivem. E, contudo, sorriem.

Os candongueiros são os populares veículos de transporte de passageiros em Angola. São na sua maioria carrinhas Toyota Hiace com lotação para 9 passageiros mas que normalmente levam muitas mais e nas ruas de Luanda são uma autêntica praga que aparecem por todos os lados, desrespeitando as regras e aumentando o caos do trânsito. A viagem custa 50 kwanzas (0.42 euros) pagos ao cobrador na porta lateral, com direito a música bem alta, 3 de setembro de 2012. PAULO NOVAIS/LUSA
Os candongueiros são os populares veículos de transporte de passageiros em Angola. São na sua maioria carrinhas Toyota Hiace com lotação para 9 passageiros mas que normalmente levam muitas mais e nas ruas de Luanda são uma autêntica praga que aparecem por todos os lados, desrespeitando as regras e aumentando o caos do trânsito.

Sobressalto! Meia noite e meia.

Divido-me entre a casa dos meus dois filhos. Estou agora na do meu filho. Uma moradia de muros altos com arame farpado e fortes portões. E câmaras de vigilância.

O alarme disparou e os cães (3 pastores alemães) ladraram forte. Lá veio o medo. Sobretudo pelas 3 crianças que dormem.

Alarme falso, não se percebeu porquê, mas o medo paira.

O Xana tem preparado um carro para usarmos. Saímos 2 vezes sozinhos, uma delas de noite, de casa da Inês para aqui e nada mais. É arriscado e os seguranças têm que proteger a minha nora e as crianças. Gestão de prioridades.

Praia de Cabo Ledo, Angola
Praia de Cabo Ledo, Angola

Por isso, este último fim-de-semana em Cabo Ledo, para lá da Barra do Kwanza, foi revigorante. Respirámos fundo, fomos à praia, rimos, sentimo-nos livres.

Leitora identificada mas que, por razões de segurança, pediu anonimato.

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