Não tinha 25 anos feitos quando cheguei a Moscovo, vindo de Bruxelas, em finais de novembro de 1973, na convicção de que o regime português ainda estava para durar muito tempo.
Depois das esperanças que a chamada primavera marcelista chegou a gerar, a repressão contra o movimento democrático que se seguiu às eleições de 68, criou um clima de desalento generalizado entre a Oposição de que eu comungava por inteiro.
Na sequência de uma greve às aulas na faculdade de Direito e de movimentos de protesto generalizados nas universidades, em que participei activamente, no verão de 71 não tive outro remédio que não fosse sair do país a salto para não ser preso pela PIDE.
Agora, ao desalento seguia-se o exílio e um grande ponto de interrogação sobre o futuro.
Foi nesse estado de espírito que vivi dois anos na Bélgica com o estatuto de refugiado das Nações Unidas. Primeiro, um ano como condutor de elétricos e depois outro como estudante da licenciatura em Direito da ULB – a Université Libre De Bruxelles.
Ter um ano de trabalho no país de acolhimento e estar no terceiro ano de um curso superior eram as duas condições nacessárias para aceder a uma bolsa de estudos e foi esse o caminho que percorri.
Mas as dificuldades de adaptação era muitas e o chumbo estava à vista. Foi então que o PC – a que pertencia desde o tempo da faculdade, ainda antes do 25 de Abril – me convidou a ir trabalhar para a Rádio Moscovo.
Na altura, e naquelas condições, parecia-me uma boa oportunidade, tanto mais que me foi dito que poderia continuar os estudos numa universidade soviética. Daquilo que lia nos livrinhos de propaganda, Moscovo surgia na minha imaginação como uma Brasília vermelha, cidade aberta ao futuro. E agora era para lá que eu ia.
Uma visita anterior a Berlim-Leste já me tinha desiludido bastante; mas as convicções levam tempo a mudar e foi ainda num espírito de encantamento que rumei à URSS.
Quando cheguei, em novembro de 73, o desencanto foi grande e imediato. Longe de ser uma capital aberta ao futuro, Moscovo era uma cidade pesada, ainda marcada pela traça medieval do Kremlin e onde as dificuldades do quotidiano eram permanentes, com lojas vazias, filas para quase tudo, grandes extensões inóspitas e muito frio. Nas avenidas centrais, os néons e plásticos da publicidade eram um arremedo patético das grandes urbes capitalistas do Ocidente.
Mas o passo estava dado e agora não havia recuo – tinha que aguentar. E ali estava eu, dando a minha voz à Rádio Moscovo, da qual, desde os 13 anos, ouvira a Emissora Nacional afirmar ser “aquela que não fala verdade!”
Um paradoxo total – falando de liberdade para Portugal, de um país em que liberdade claramente não havia… Uma espécie de contraponto invertido, a leste, do fechar de olhos das democracias à entrada de um regime não democrático na NATO, depois de nada terem feito, a seguir à guerra, para se verem livres de Salazar. As teias que os impérios tecem…
Eis se não quando, passados pouco meses, para surpresa de todos, chegou o 25 de Abril!
As notícias eram escassas e as comunicações difíceis. Era ainda o tempo em que se tinha de pedir às telefonistas uma ligação internacional e depois ficar à espera, durante horas, sabendo que tudo iria ser escutado e gravado .
No entusiasmo em que fiquei, o que me valeu foi um velho rádio militar russo que existia, meio esquecido e sem uso, na redação África em língua portuguesa da Rádio Moscovo.
O sinal era péssimo – só conseguia entender alguma coisa com o ouvido literalmente colado ao aparelho; mas dava, ainda assim, para acompanhar as peripécias dos acontecimentos através da velha Emissora Nacional.
Passava lá os dias, seguindo a par e passo, como podia, o que se passava em Portugal.
A junta militar que tomou o poder e sobretudo o discurso recuado e ambíguo de Spínola em relação à guerra nas colónias não inspiravam grande confiança; porém, logo se percebeu que havia outra dinâmica em curso e que estávamos “apenas no início” – na vox populi captada nas ruas e no calor dos acontecimentos por esse grande repórter que é Adelino Gomes.
Quis de imediato deixar tudo, fazer as malas, e voltar para Portugal, de onde tinha saído clandestinamente em 1971.
Mas o passaporte não estava comigo e não me foi cedido de imediato, pelo que (na ausência, ainda, de embaixada de Portugal em Moscovo), fiquei bloqueado durante meses, sem poder ir partilhar a alegria da libertação para qual, ainda que modestamente, também tinha dado a minha contribuição através da luta do movimento estudantil, na Faculdade de Direito de Lisboa, e da ligação com o movimento operário, na região de Vila Franca, onde residiam os meus pais.
Esse período forçado na Rússia mudou todo o meu estado de alma e mudaria também a minha vida para sempre. Quando finalmente pôde regressar, em novembro de 1974, já vinha desiludido e com a morte na alma. E por isso não me envolvi nas tensões que marcaram o verão quente de 75.
Agora, na Rússia, já tinha uma Natacha à minha espera e era para lá que eu queria voltar – já não por razões políticas, como da primeira vez, mas por questões pessoais e profissionais. Apesar de tudo, a experiência anterior de Moscovo e o conhecimento do russo valiam alguma coisa. De país fechado, Portugal abria-se agora ao contacto com outros Estados antes banidos e havia curiosidade sobre esse mundo para além da “cortina de ferro”.
Foi com essa bagagem que me dirigi diretamente à Emissora Nacional a apresentar os meus serviços, mais ou menos nestes termos – vocês não querem um correspondente em Moscovo? Já lá vivi um ano e falo russo…
A anuência foi mais rápida do que eu previra. Pouco depois, no dia 17 de outubro de 75, o então diretor dos serviços de programas da E.N. passava-me cartão de correspondente e assinava uma carta à embaixada de Portugal na URSS literalmente nestes termos:
“Informo V. Exª. que a partir desta data o Sr. Carlos Alberto Gonçalves Fino é o correspondente oficial desta emissora em Moscovo. Com os melhores cumprimentos, António M. C. Pessanha de Oliveira, CAP.”
Compreendi rapidamente que estava investido de uma responsabilidade nacional incompatível com a militância política. O auditório era diverso e contraditório e exigia por isso ponderação e equilíbrio. Foi ali, verdadeiramente, que morreu o militante comunista e nasceu o repórter nacional.
Tanto mais que a investidura era súbita e galgava todos os degraus – ser correspondente em Moscovo era – naquela época – o topo da carreira de jornalista em qualquer país ocidental. E eu começava por cima, sem qualquer tirocínio prévio! Como me disse certa vez o Adelino Gomes, fui general sem nunca ter sido soldado…
Com um curso a meio e um filho para nascer, agarrei-me a essa oportunidade com a fúria dos desesperados – era morrer ou vencer.
Do que se passou a seguir, é outra estória que não cabe aqui.
Aqui cabe apenas assinalar como vivi – graças à existência de um velho rádio abandonado e ainda que a milhares de kms de distância, em consonância com o meu povo, finalmente liberto da opressão política, um dos dias mais felizes da minha vida – o 25 de Abril de 1974.