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Domingo, Novembro 3, 2024

Memórias de um repórter, por Paulo Verlaine

Por ocasião do Dia da Imprensa (1º de junho), o jornalista e escritor cearense Paulo Verlaine contou algumas memórias de sua longeva carreira de jornalista profissional.

Confira:

Memórias de um repórter

por Paulo Verlaine

 

Cravos de Abril na Redação

25 de abril de 1974, redação do jornal “O Povo” em Fortaleza (CE). O telex disparava notícias importantes vindas de Portugal. Tudo ainda confuso. Mas, depois, os despachos já eram claros: o ditador de direita Marcelo Caetano – primeiro-ministro que sucedeu Antonio de Oliveira Salazar, implantador da ditadura – havia sido deposto por um golpe militar apoiado pela população. Moças colocavam cravos vermelhos nos fuzis dos militares.

À tarde, chega meu chefe, homem bom e digno, mas direitista. Quis saber as novidades do dia. Respondi que a ditadura direitista portuguesa havia sido derrubada por um golpe militar. Surpreso, ele perguntou: “E o Marcelo Caetano?”

Eu: “Pediu asilo político na embaixada brasileira”.

Ele: “E o Américo Thomaz? (presidente da República) Continuará o mesmo regime, talvez até mais duro”.

Eu: “Chefe, parece que não. Anunciaram eleições livres e a legalização de todos os partidos políticos, inclusive o Comunista (PCP) e o Socialista (PS)”.

Ele: “Os militares anunciaram isso?”

Eu: “Sim”.

Ele: “O mundo está perdido!!


Hippies encalham com iate em Fortaleza

Em 1976, um pequeno iate, vindo da África do Sul, encalha em praia de Fortaleza. A bordo: jovens (rapazes, moças e até uma criança). Todos brancos. Maioria era de louros. Cinco a seis pessoas mais ou menos. Fui designado pelo chefe de Reportagem do jornal “O Povo”, jornalista Flávio Ponte, para acompanhar o caso.

Sem visto de entrada no Brasil nos passaportes, alguns não tinham nem passaportes, o grupo foi detido pela Capitania dos Portos e, depois, encaminhado à Escola de Aprendizes Marinheiros. Não estavam oficialmente presos, mas sob vigilância. Não podiam abandonar o local.

Cheguei à Escola de Aprendizes Marinheiros e me permitiram conversar com o grupo. Meu inglês dava para entender e me fazer entender. Fui apresentado ao comandante do iate: um americano mais jovem do que eu, uns 23 ou 24 anos, com cara de menino. Era o único com “conhecimentos náuticos” entre eles. Não recordo o nome dele. Vou pesquisar mais no Banco de Dados do “O Povo”.

O comandante jovem explicou que eles haviam saído de Capetown (Cidade do Cabo) para ligeiro passeio pela costa sul-africana. Exemplo: tipo Fortaleza-Canoa Quebrada. Haviam pedido emprestado o iate a um amigo. Acrescentou: uma tempestade e correntes marítimas desviaram embarcação do rumo e eles vieram parar em… Fortaleza.

Indaguei-lhe sobre o tratamento que estavam a receber. Nenhuma queixa. A namorada dele, uma francesa, chamava a atenção pela beleza (rosto e corpo) e estava muito bronzeada pelo sol, o que a tornava mais atraente. Detalhe: não usava sutiã e tinha vestido bem cavado nas axilas não depiladas. Ao levantar os abraços exibia belos e firmes seios. Não se incomodava com isso.

Passaram-se alguns dias. O grupo continuava sob custódia da Marinha. Um dia surge novidade: o dono do iate aparece em Fortaleza. Era jovem também, mas com idade superior à dos hippies: uns 30 a 35 anos. Estava furioso. Fui conversar com ele na Capitania dos Portos. Admitiu que emprestara o iate para viagem curta na costa sul-africana, mas afirmou que a história do americano de “tempestade e correntes marítimas” era fantasiosa. Sustentou que o pessoal resolvera fazer aventura à revelia de sua vontade.

Voltei à Escola de Aprendizes Marinheiros. Ao conversar com o “comandante americano” e dizer que “the yacht’s owner is here in Fortaleza” (o dono do iate está aqui em Fortaleza), ele – que me entendera tão bem da última vez – passou a não compreender nada do meu inglês. Alguns dias se passaram. O grupo retorna à África do Sul no mesmo iate. Nunca mais tive notícias desse grupo de “malucos beleza”.


Missa negra em Praia do Aracati (CE)

Metade para final dos anos 70. A primeira notícia foi publicada pela jornalista Inês Aparecida, então repórter do jornal “Tribuna do Ceará”: a de uma suposta “missa negra”, ritual satânico, ocorrida na igreja de Majorlândia, praia de Aracati. O chefe de Reportagem do “O Povo”, Flávio Ponte, me manda ao lugar a fim de apurar o assunto.

Fui lá. Ouvi vigário, delegado, pessoas que testemunharam de longe algo estranho a ocorrer, altas horas, na igreja. Chegaram a tocar o sino para espanto dos moradores. A Polícia foi acionada e o grupo levado à delegacia para prestar depoimento e, em seguida, liberado.

Era gente da alta sociedade de Fortaleza. Não lembro os nomes deles. Depois, vou procurar esses dados para reuni-los em livro sobre minhas memórias de repórter e editor de setor durante 40 anos. Os relatos saíram no “O Povo”. Desloquei-me duas a três vezes à praia de Majorlândia, com o repórter-fotográfico Alcebíades Silva e motorista (não lembro o nome dele). Achei ótimo.

Depois de cumprida a missão de entrevistar o pessoal, ninguém é de ferro: haja peixe e cachaça do Cumbe (transparente, fortíssima). Não havia pressa para retornar. As matérias seriam produzidas no dia seguinte, com calma.

Pelos relatos, cheguei à seguinte conclusão: não houve missa negra ou qualquer ritual satânico. Apenas farra (bebedeira) de rapazes, acompanhados por algumas mulheres, no interior da igreja. A porta ficava aberta e eles se acharam no direito de entrar. Beberam uísque e cerveja. Algumas garrafas ali foram deixadas, segundo os moradores do então povoado.

Se houve sexo ou consumo de drogas no interior da igreja não tenho elementos para dizer. Estaria a faltar com a verdade se o dissesse. Apenas suspeitas, sem provas, levantadas por algumas pessoas (não todas). Falta de respeito ao local de oração, tudo bem. O resto é especulação e não se pode dar crédito à especulação.

Com as reportagens publicadas, três rapazes envolvidos no caso, bastante preocupados, foram ao “O Povo” dar a versão deles. Ouvi-os. Confirmaram que entraram na igreja apenas para visitá-la e que não beberam nada ali (não acredito), que não houve consumo de drogas e sexo (fica a dúvida) e que não se realizou missa negra ou algum ritual satânico (nisso eu acredito: acho também que não houve).

Quando vou a Aracati nunca deixo de lembar dessa história. A Praia de Majorlândia era a mais famosa da região. Canoa Quebrada, era apenas um povoado de pescadores, mas alguns hippies já a haviam descoberto. Hoje Canoa Quebrada é point turístico mundial. Ninguém se lembra mais de Majorlândia. É a vida. The life goes on.


por Paulo Verlaine, Jornalista e escritor, foi ombudsman do jornal “O Povo”, de Fortaleza (CE) | Texto em português do Brasil

Exclusivo Editorial PV / Tornado


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