Achou por bem o senhor Presidente da República, na cerimónia de atribuição da medalha da ‘Ordem do Infante D. Henrique’ a um treinador de futebol, justificar essa atribuição com a projecção internacional do treinador, comparável à do Infante.
Se há coisa que aprendi nas minhas viagens pelo mundo é que não existe em Portugal qualquer personalidade contemporânea ou do passado que tenha a mesma notoriedade dos portugueses empenhados no mundo do futebol.
E verifiquei mesmo que a notoriedade desses portugueses era maior do que a das figuras internacionais que eu julgava mais conhecidas. Em Lambaréné, cidade gabonesa tornada célebre por Albert Schweiztzer, dei-me conta que o treinador português da equipa local de futebol era mais conhecido que o médico alsaciano, fenómeno que voltei a testemunhar em vários outros locais onde portugueses de que eu nunca tinha ouvido falar se tinham tornado famosas personalidades graças ao futebol.
Mas mesmo onde não há notícia de portugueses em equipas locais de futebol, não encontrei personalidade ou dirigente português contemporâneo ou do passado que rivalize com os portugueses empenhados no futebol, excepção feita a Goa onde Vasco da Gama e António Costa, por esta ordem, são os portugueses mais conhecidos.
Como fez questão de assinalar o nosso Presidente no seu discurso, o medalhar de futebolistas é uma tradição que ele prossegue dos seus antecessores, mas o que é aqui significativo é que ele tenha invertido os termos da homenagem: não são os homenageados que são avaliados pelos critérios estabelecidos pelos símbolos da homenagem, são estes símbolos que passam a ser apreciados em função dos atributos dos homenageados.
E se o Infante deve ser apreciado em função da notoriedade, ele fica necessariamente a perder na comparação com o futebolista, e Álvares Cabral ou D. Pedro IV meras referências da era pré-futebol, ficarão porventura em segundo plano daqui a cinquenta anos, como se pressente na lógica discursiva do homenageado na citada cerimónia.
A redução do mérito à notoriedade é o que há de mais essencial no fenómeno do que se tem denominado de populismo, mas que ganha aqui uma dimensão mais universal que transcende a esfera política.
O critério definitivo de avaliação dos cientistas, artistas, professores ou sindicalistas passa a ser o da sua notoriedade no campo nacional e internacional, não o do seu mérito avaliado por qualquer corpo de elite e menos ainda o da consciência de cada um, e isto implica necessariamente que a personalidade de mérito deva estar acima de tudo atento à forma como é mediaticamente impulsionado.
A notoriedade deixa assim de ser um acessório, um complemento que pode servir para estimular o mérito, mas passa a substituí-lo. A enganadora máxima de ‘em política o que parece é’ dá assim lugar a outra substancialmente mais perigosa: ‘no mundo, quem aparece é’ .
E o problema é que este princípio intrinsecamente popular entrega ao poder mediático uma potência desproporcionada e que essa desproporção possibilita a sua manipulação, incluindo a sua apropriação totalitária por um qualquer Ministério da Verdade, como foi magistralmente explicado por George Orwell.
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