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Quinta-feira, Novembro 21, 2024

México exige que Espanha se desculpe pelos abusos da colonização

As veias da América Latina seguem abertas. Sabe-se que a história oficial é contada por quem venceu a guerra. Isso não significa, necessariamente, que a vitória tenha sido conquistada de forma leal. Na tentativa de estancar a sangria, o presidente do México, Andrés Manuel López Obrador, exigiu que a Espanha e a Igreja Católica se desculpem, oficialmente, junto aos povos originários pelos crimes cometidos durante a invasão e colonização feita pelos espanhóis, em 1500. 

“Pois assim aconteceram as coisas: enquanto se está desfrutando da festa, ora com baile, ora com canto (…), neste exato momento os homens de Castela decidem matar o povo.” O relato anônimo foi resgatado em meados do século passado por pesquisadores a partir de códices astecas hoje arquivados na Biblioteca Nacional do México e na Biblioteca Nacional da Espanha. O trecho extraído do livro “A conquista da América Latina vista pelos índios”, organizado por Miguel León-Portilla, narra o episódio em que um grupo de espanhóis, de forma traiçoeira, invadiu uma festa e matou centenas de pessoas que, na ocasião, estavam desarmadas, na então cidade de Tenochtitlán, onde hoje é a Cidade do México.

Não é necessário ter senso crítico muito aguçado para questionar a versão ensinada inicialmente na escola sobre a chegada dos espanhóis e dos portugueses à América. Ao longo de décadas, pesquisadores contestam a narrativa que apresenta os conquistadores como heróis responsáveis pelo desenvolvimento dos países após a derrota dos povos originários, considerados bárbaros. 

Mas para López Obrador, não basta questionar a versão de quem venceu, é preciso ir mais fundo e exigir desculpas. O presidente acredita que uma conciliação real entre o México e a Espanha só será possível se o colonizador reconhecer que durante a chamada “conquista” cometeu crimes hediondos contra os povos indígenas. “Mesmo que se negue, há feridas abertas. É melhor reconhecer que houve abusos e que erros foram cometidos. É melhor pedir perdão e, a partir disso, buscarmos juntos uma reconciliação histórica”, disse o presidente mexicano. 

Em carta enviada ao Rei Filipe 6º da Espanha, López Obrador pede o reconhecimento dos abusos a fim de construir um caminho de reconciliação. Para o presidente, o ideal é que o reconhecimento fosse feito até 2021, data que marca os 500 anos da queda de Tenochtitlán, onde hoje é a capital do país. 

O México não pretende pedir ressarcimentos econômicos à Espanha, tampouco questiona o conceito da conquista, apenas exige que os ex-colonizadores admitam os crimes cometidos. A partir disso, o governo mexicano está disposto a assumir também os abusos do Estado ao longo de 200 anos de independência. 

A Espanha, por sua vez, encarou o pedido como uma afronta e já respondeu, de forma categórica, que não irá atendê-lo. O primeiro-ministro espanhol, Pedro Sánchez, afirmou que não se pode julgar a chegada dos espanhóis a partir de “considerações contemporâneas” e argumenta que os dois países “sempre conseguiram avaliar sua história a partir de uma perspectiva construtivista”. 

Entretanto, o ditado é antigo, “quem apanha não esquece”. Não à toa a América Latina ainda paga o preço da invasão que levou daqui ouro, madeira nobre, minerais e trouxe, em troca, navios com porões cheios de ratos, trabalho escravo e incontáveis doenças. 

Até hoje, pouco se sabe da versão dos que perderam a guerra. O trecho do relato asteca destacado no início da matéria continua assim:

fecham as saídas (…). Imediatamente cercam os que dançam, atiram-se sobre o lugar dos atabaques: deram uma cutilada no que estava tocando, cortaram-lhe ambos os braços. Logo o decapitaram, longe foi cair sua cabeça cortada. Já então começaram a passar a todos ao fio das espadas. (…) O sangue dos guerreiros corria como se fosse água: como água se alaga, e o mau cheiro do sangue e das entranhas, que pareciam arrastar-se, tomava conta do ar”.

Esta compilação de depoimentos dos sobreviventes – entre eles cientistas, economistas e líderes religiosos, afinal tratava-se de uma sociedade organizada e economicamente forte – não deixa dúvidas, o México de hoje (e toda a América Latina) é fruto de uma invasão seguida de assassinatos e estupros que resultaram na miscigenação forçada e imposição de uma cultura sobre outra à base da dominação. 

Ao exigir que a Espanha se responsabilize por estes crimes, López Obrador não quer uma vingança revanchista, pelo contrário, ele reivindica uma revisão histórica digna dos povos que viveram e construíram as sociedades pré-hispânicas. Segundo o presidente, em 2021, quando serão celebrados os 500 anos da “conquista”, não há nada para ser comemorado se não houver uma conciliação real entre os dois países. “A chamada ‘conquista’ foi realizada pela espada e pela cruz. Vamos fazer um relato do acontecido desde o início da ocupação, da invasão militar; os três séculos de colônia”, pediu o governante. 

O México pós-neoliberalismo

O progressista López Obrador, do Movimento de Renovação Nacional (Morena), foi eleito em julho do ano passado e deu fim aos 90 anos de revezamento entre os partidos PRI e PAN no poder. Ao assumir a presidência, recebeu um Estado falido, devastado pelos anos de neoliberalismo que deixaram o México à mercê do crime organizado e da exploração do capital estrangeiro.

Cabe ao novo chefe de Estado romper com este ciclo de exploração no país condenado a viver tão longe de Deus e tão perto dos Estados Unidos de Donald Trump. Os desafios são grandes para o líder que reivindica o nacionalismo revolucionário do ex-presidente mexicano de esquerda Lázaro Cárdenas (1934 – 1940).

Inspirado no governo Cárdenas, López Obrador propõe políticas públicas de inclusão social para impulsionar o crescimento econômico nacional. Ao reivindicar uma revisão histórica da Espanha sobre seu papel enquanto colonizador, reforça a dignidade dos povos originários responsáveis pela construção da sociedade asteca que cimentou a cultura mexicana.

Vale destacar que o pedido do presidente não é inusitado, tampouco impossível. Outros países já se desculparam com povos de territórios colonizados, é o caso do Canadá, da Inglaterra e da própria Espanha. Na América Latina, quem obteve tal conquista foi a Bolívia de Evo Morales. Em 2015 o papa Francisco pediu perdão pela colonização “não apenas pelas ofensas da própria igreja, como também pelos crimes cometidos contra os povos durante a chamada conquista da América”. López Obrador deu o primeiro passo, resta saber se até 2021 a Espanha mudará de ideia para começar a fazer a sutura.


por Mariana Serafini, Jornalista e estudiosa da América Latina | Texto em português do Brasil

Exclusivo Editorial PV / Tornado


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