Este ano, Milton Hatoum é o grande homenageado da União Brasileira de Escritores com o prêmio que destaca a personalidade nacional cuja a obra e o pensamento são colocados a serviço da população e da cultura brasileira.O escritor recebe o Juca Pato 2018 por sua obra mais recente, “A Noite da Espera”, o primeiro da trilogia O Lugar Mais Sombrio, mas também por sua contribuição intelectual ao longo dos anos.
Manauara, 66 anos, formou-se arquiteto, já foi professor – tanto de Arquitetura quanto de Literatura e sempre escreveu, profissão esta que hoje é sua fonte de renda e reconhecimento, seja através dos prêmios, traduções, adaptações, teses, pesquisas ou pela fidelidade dos “bons leitores”. Já escreveu poesia, crônicas, contos e romances.
Começou com Relato de Um Certo Oriente (1989) e, na sequência, vieram Dois Irmãos (2000) e Cinzas do Norte (2005). Reuniu contos em A Cidade Ilhada, em 2006; escreveu a novela Órfãos, em 2008; e juntou as crônicas em 2013, em Um Solitário à espreita. No ano passado, lançou A Noite da Espera, e já trabalha para finalizar o segundo título da trilogia (previsto para o início de 2019), revelando ter várias outras “inquietações” (entre essas talvez mais um livro de contos e um segundo volume de crônicas).
Após ser indicado ao prêmio, que recebeu na noite da última segunda-feira (18), em cerimônia na Biblioteca Mário de Andrade, na capital paulista, o escritor concedeu a seguinte entrevista.
Como você recebe essa homenagem do Prêmio Juca Pato, que, aliás, não é seu primeiro prêmio?
Eu fiquei surpreso. A gente nunca espera, nem escreve para ganhar prêmios. Eu costumo dizer que o grande prêmio do escritor é o leitor talentoso; um bom leitor. Mas eu fico honrado, pois é um prêmio que já foi dado a grandes intelectuais brasileiros. Alguns eu tive o grande prazer de conhecer e conversar, a exemplo de Antônio Cândido e outros grandes que já ganharam o Juca Pato.
Apesar de ficção, parece que suas obras falam muito sobre você. Falam?
Falam de algumas experiências da minha vida, mas são de leituras que também passaram por uma espécie de filtro da minha imaginação. Porque a literatura não é um espelho, um retrato do real. Ela paga um dízimo à realidade, isso, sim; sempre. Ela sempre parte de algo de você vivenciou ou de um estranhamento qualquer ou, às vezes, de um sonho ou uma leitura. A experiência e a memória não são coisas que são transpostas à literatura. Na medida que você usa ou evoca sua experiência ou memória, você faz um trabalho de transcendência, de construção de um artifício pela palavra, pela linguagem. É uma coisa que você acha que poderia ter acontecido. A literatura não pretende ser fiel à realidade. Esse tipo de fidelidade os escritores rejeitam. Ela tem que ser fiel a uma realidade íntima.
Como se dá o seu processo criativo? O que é importante e não pode faltar ao escrever uma obra?
O mais importante para mim é encontrar a forma daquilo que quero escrever. A forma significa o modo de narrar, a estrutura da narrativa, as personagens, os conflitos; como é que isso tudo vai se organizar na arquitetura do romance. Eu demoro muito para escrever – na verdade, essa demora é um tempo de espera para que toda essa arquitetura seja armada na minha cabeça ante de passar qualquer coisa para o papel. Eu procuro amadurecer essas ideias, também através das minhas experiências e das minhas leituras. Aí, eu acho que a experiência conta muito, nesse processo de amadurecimento. Eu penso como eu vou dar voz a esse narrador, ou a essas personagens; qual é o tom dessas vozes; como elas vão se relacionar entre si num arco temporal; como elas serão modificadas ao longo do tempo. Porque o romance é basicamente sobre a passagem do tempo. E isso demora. Eu passo anos e anos falando isso para mim mesmo; me interrogando. Meu tempo é outro. O tempo da literatura é outro e vai na contracorrente de tudo o que acontece hoje com as novas formas de comunicação e tecnologia. Para quem escreve é fundamental esperar o tempo passar, para que o passado de fato fique sedimentado e faça sentido. Ao ser reinventado o passado é uma espécie de grande presente e tem caráter de perene na literatura.
Você falou sobre a arquitetura do romance. O que tem do arquiteto no escritor e o que tinha já do escritor, no arquiteto de sua formação?
Na minha época da FAU, aqui na USP, eu já escrevia poemas, frequentava cursos de literatura; fundei com os amigos da faculdade uma revista de poesia e desenho. Trabalhei com jornalistas em jornais e revistas aqui de São Paulo. Já escrevia contos e poemas – aliás já publiquei um livrinho de poema, com fotos de amigos. Enfim, eu já sentia desejo de escrever. Eu trabalhei algum tempo como arquiteto e professor de Arquitetura, mas depois – no final dos anos 70 – fui embora do Brasil, morei na Europa e me dediquei ao ensino da Literatura. Do arquiteto há muita coisa, o modo de pensar e organizar o espaço, por exemplo; os desenhos que eu faço antes de escrever, como montagem do que quero escrever; às vezes desenhos de uma casa, um ambiente, um personagem. Essa relação com a arquitetura é uma relação que está também nos meus romances, na medida em que eles falam muito das cidades – sobretudo Manaus, nos primeiros romances, e de Brasília, no último. Brasília, Manaus e, agora, São Paulo (no segundo volume, da trilogia, que está para sair) são cidades que fazem parte da minha vida. Sou manauara, candango e paulistano. Vivi intensamente nessas três cidades. O arquiteto que eu não fui talvez exista, também, na literatura.
Poderia nos falar um pouco sobre esse período da FAU? Como era o Hatoum universitário?
Esse é o tema do segundo volume dessa trilogia (O Lugar Mais Sombrio). Uma tribo que sai de Brasília – uma parte dela, que é o narrador e a namorada dele e um amigo nortista – que vêm morar em São Paulo, aqui na Vila Madalena, na época que esta era uma aldeia. Então, foi uma época difícil para os jovens que estavam envolvidos em protestos e outros na luta mesmo, contra a ditadura. A USP e outras universidades (UnB, PUC SP) de fato estavam envolvidas em movimento estudantil. E, mesmo que você não participasse, você sabia o que estava acontecendo e, muitas vezes, era levado a participar de assembleias, passeatas, manifestações. E havia o medo também: medo ser preso, torturado e assassinado. Havia censura. Havia delação. Não sabíamos quem era quem. Isso criava um ambiente de temor e, às vezes, de pânico e reclusão.
Esse momento dos anos 70, sobretudo aqui em São Paulo, eu trabalho no próximo livro. Porém, também lembro dessa fase, na FAU, que tive grandes professores. Eu fiz meu primeiro trabalho de iniciação científica com o geógrafo Milton Santos; entre outros como Flávio Motta, Flávio Império, Gabriel Bolaffi, Nina Katz.
E como foi a infância em Manaus e qual é a sua relação com essa cidade, tão presente nos primeiros romances?
Hatoum – Minha infância em Manaus foi a de um menino numa cidade pequena, provinciana, mas uma cidade portuária e, portanto, muito aberta ao movimento de passageiros brasileiros e estrangeiros. Manaus sempre foi uma espécie de Meca do Exotismo, por conta da floresta e do rio, e também de muitos aventureiros. E muitos aventureiros que passaram por lá, na época, ficavam por lá. Então, alguns dos meus personagens foram inspirados em estrangeiros (alemães, árabes, judeus marroquinos, portugueses e a caboclos também), pessoas que conheci na minha infância e primeira juventude. Foram pessoas que marcaram a minha vida, pela presença, pela voz, pelo olhar sobre o outro, sobre Manaus. Foi uma infância também numa cidade em que ainda coexistia, harmonicamente, com a natureza. Assim até os anos 60, porque depois – como dizia Euclides da Cunha – a cidade cresceu “à gandaia”. Mas foi uma infância sem medo, com brincadeiras, nas praças, nos quintais, nos igarapés.
E como foi o tempo em Brasília? O que a cidade representa para você?
Eu fui a Brasília no final de 67, para estudar, quando eu tinha 15 anos. Fui para estudar no Colégio de Aplicação – que era público também (funcionava dentro da UnB). Para mim, Brasília significou uma série de iniciações. Iniciação sentimental, sexual, política, moral, intelectual. Porque eu estava sozinho e precisava me virar, também. Eu tinha que estabelecer novas relações. Não tinha família, não tinha amigos. Um colégio novo e de vanguarda. Eu saí (de Manaus) de um colégio muito tradicional – inspirado no O Ateneu, de Raul Pompéia – e caí numa escola meio construtivista, experimental, com muitos laboratórios, salas com doze alunos, tinha teatro, música, fotografia, artes plásticas. Era um colégio dos sonhos. Centro Integrado de Ensino Médio. Para mim, foi uma descoberta de muitas coisas, mas também foi um trauma. Foram as grandes paixões, mas também os primeiros grandes traumas. Eu fui detido numa passeata. O campus era invadido com frequência (policiais e exército). O movimento estudantil era muito forte na UnB. Havia uma liderança nacional, em Brasília. Um líder que depois desapareceu, foi assassinado: Honestino Guimarães (estudante da UnB). E foi muito difícil porque eu era muito jovem, nessa época. Mas eram sentimentos que oscilavam muito, ia do prazer estética de estar em Brasília no início da cidade (uma grande lição de arquitetura e urbanismo) à solidão. Porque Brasília é a solidão, naqueles espaços e distâncias enormes. Aquele céu maravilhoso e também enganoso na sua beleza e luminosidade; como se ele fosse um contraponto à violência da terra, às adversidades e traumas. Mas, naquela época, nem o céu nos protegia.
E na literatura, você tem um gênero de preferência?
Eu gosto de tudo. Gosto da literatura, gosto do teatro também. Mas, talvez, quando eu penso numa história e essa história não cabe num conto, eu passo para o romance. Então, eu não teria um gênero preferido. Embora, eu considere a poesia como o grande gênero da literatura. A poesia para mim, é o mais difícil. Ela pede um ritmo, um tom e uma construção muito particulares que só poucas pessoas conseguem. Eu escrevo poesia clandestinamente; nunca me interessei em publicá-las – acho que nem devo, no momento. Mas os poetas talentosos têm alguma coisa de mago. É difícil dizer “eu quero ser poeta”. Você é poeta. Como dizia Bandeira, o poema se escreve.
Seus livros já viraram minisséries, teses, teatro, quadrinho, novela, já foram traduzidas e estão em vários países. Você imaginava isso?
Eu nem achava que ia ter um público leitor grande no caso dos dois primeiros romances. Eu achava que iam ser lidos apenas por família e amigos. Mas isso a gente nunca sabe; a história de um livro. Eu não fazia ideia de como seriam as adaptações, nem pensava nisso. Tudo isso foi surpresa. Os quadrinhos dos gêmeos (paulistanos Gabriel Bá e Fábio Moon) são geniais (ganharam prêmio Eisner de adaptação nos Estados Unidos).
Poderia nos dar algumas palavras para os jovens escritores, que estão iniciando neste caminho?
É importante ler muito. Ler os clássicos, os bons livros. E viajar, conhecer outras culturas, outras pessoas. Viver intensamente, mas você também pode viver intensamente uma vida reclusa. Eu acho que existe uma aventura interior que não é nada desprezível. Muitos jovens são tímidos, reservados, e não precisam conhecer e provar tudo; podem ter uma vida interior muito rica e cheia de complexidades e escrever a partir disso, dessa interioridade. Porque o romance, e muitas vezes a poesia, a literatura opera com fatores internos e externos. Ou seja, com a vida, com a realidade, a história, mas também com suas obsessões, traumas, desencantos, medo, paixões. Então, eu procuro encontrar uma síntese entre esses fatores. Para que nem tudo seja um romance de ação e nem tudo seja introspectivo também.
O Prêmio Juca Pato é o principal prêmio para homenagear a intelectualidade brasileira. Criado pela UBE, em 1962, tem por objeto conferir uma homenagem àquele que, no ano anterior, tenha publicado uma obra de grande impacto e repercussão nacional.
O prêmio leva o nome de Juca Pato, personagem criada pelo jornalista Lélis Vieira e ilustrada pelo caricaturista Benedito Carneiro Bastos Barreto, para o jornal Folha da Manhã. A figura representava, em suas características, o escritor brasileiro.
Desde a criação, o Prêmio Juca Pato vem sendo outorgado regularmente – a cada ano – pela entidade. O primeiro a receber foi o advogado, escritor e chanceler, Santiago Dantas, pela Política Externa Independente. Érico Veríssimo; Jorge Amado; JK; Carlos Drumond de Andrade; Antonio Callado; Antonio Candido; entre outros grandes nomes.
Dentre os 61 escritores já premiados, quatro foram mulheres: Cora Coralina (1983), Rachel de Queirós (1992), Lygia Fagundes Telles (2008) e Renata Pallottini, a homenageada de 2017.
Este ano, a escolha da UBE foi o grande escritor brasileiro Milton Hatoum, membro da UBE, pelo romance A noite da Espera, que é de altíssima qualidade e de leitura obrigatória. Ele é um dos maiores escritores de todos os tempos”.
Texto em português do Brasil
Exclusivo Editorial PV (Fonte: O Escritor )/ Tornado
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