Devo a Mário Soares um dos momentos-chave da minha carreira profissional – o convite que me fez, em Novembro de 1987, para o acompanhar como tradutor oficial na sua visita de Estado à URSS de Gorbachev
Embora amigo do filho, João, de quem fui colega na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, ambos tendo integrado a direcção da Associação Académica, ainda antes do 25 de Abril, eu não era próximo de Soares. No âmbito dessa actividade associativa, cheguei até a ir a sua casa, no Campo Grande, junto com o João, pedir conselho jurídico pro bono para saber como nos defendermos melhor se houvesse algum processo por parte da PIDE devido a uma das nossas publicações que, de acordo com o espírito da época, se intitulava Ousar Lutar, Ousar Vencer.
Mas isso era tudo – nem o convívio com o filho, na Faculdade, nem as minhas opções políticas da época me aproximavam mais daquele que era, já então, um dos grandes líderes da Oposição Democrática. Entretanto, mais de uma década depois, em 1986, voltei a cruzar-me com Mário Soares. Foi na célebre noite da vitória na segunda volta das presidenciais, quando Soares – contra toda as expectativas – conseguiu arrebatar o triunfo a Freitas do Amaral.
Chovia a cântaros, nessa noite, em Lisboa. E tudo estava programado para o comício da aguardada vitória de Freitas, no Marquês de Pombal. Eu era o repórter (de) e (re)signado…. Eis se não quando, de repente, não mais que de repente, veio a notícia de que as urnas davam vantagem a Soares…
A equipa da RTP teve que operar o milagre de transferir em poucos minutos todo o circo mediático do Marquês para o Saldanha – e foi da varanda do prédio do MASP que então reportámos ao vivo a inesperada vitória de Soares, que me abraçou quando me viu. A isto se limitavam, no entanto, as nossas relações – respeito e simpatia.
A decisão de Soares de me levar como intérprete não se baseou assim em qualquer vínculo, nem de amizade, nem, muito menos, partidário. Quando muito, terá partido da sua constatação de que eu falava russo e – talvez sobretudo – do seu reconhecido feeling político: levar consigo um homem que saíra de Moscovo em conflito com o regime soviético, era certamente um sinal de independência e um teste à proclamada abertura de Gorbachev.
Para mim, claro, pessoal e profissionalmente foi óptimo Eu, que, em 1982, havia saído de Moscovo pela porta baixa – na sequência de um acto de agressão da polícia que ganhou foros de episódio da Guerra Fria – voltava agora, cinco anos depois e pela mão de Soares, a entrar de novo na Rússia pela porta grande – a dos encontros ao mais alto nível no interior do Kremlin.
A visibilidade trazida por essa missão contribuiu certamente – e muito – para dois anos depois ser nomeado pela RTP novamente correspondente da estação pública na capital soviética, onde iria ter o privilégio de acompanhar ao vivo e reportar para Portugal todo o processo que acabaria por conduzir ao colapso do comunismo. Devo isso a Soares. Reconhecê-lo agora, na hora do adeus, é, da minha parte, um acto de elementar justiça. Mas essa não é a minha maior dívida de gratidão para com Mário Soares. A minha maior dívida para com ele – e penso que para a grande maioria dos portugueses, descontando os que até hoje não lhe perdoam a descolonização – é o facto de nos ter ensinado a todos a respeitar as opiniões dos outros.
Lembro-me bem de que foi a sua conduta – sempre marcada pela bonomia e por um genuíno e espontâneo gosto pela vida – e foram as suas palavras de cunho pedagógico à António Sérgio – que ao longo de todos os anos conturbados que se seguiram ao 25 de Abril contribuíram, de forma decisiva, para criar no país – em tempos de radicalização à beira da guerra civil – um ambiente de tolerância e convivência democráticas. Não é pouca coisa – é imenso, mesmo tendo em conta as suas debilidades e erros de que agora não é certamente a hora de falar. Se há hoje democracia em Portugal, certamente o devemos a Mário Soares. Conhecido e respeitado internacionalmente mais do que qualquer outra grande figura política portuguesa contemporânea, o seu nome perdurará na memória e no coração da maioria dos Portugueses.